Publicado em: 10/04/2008
Na última semana, a coordenadora do Departamento de Dependência Química da ABP, Ana Cecília Marques, esteve em Brasília. Como representante da Associação no movimento Propaganda sem Bebida, a psiquiatra participou da reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), onde foram entregues mais de 600 mil assinaturas de apoio ao Projeto de Lei 2733/08, que amplia a restrição de publicidade para bebidas com teor alcoólico entre 0,5 e 13 graus na escala Gay-Lussac, como cervejas, "ices", vinhos e champanhe. Após o encontro com o parlamentar, Ana Cecília participou de audiências com os ministros da Saúde, José Gomes Temporão e da Justiça, Tarso Genro.
O site da ABP entrevistou a pesquisadora, que falou sobre a importância dos projetos e o momento político favorável para sua aprovação. Leia a íntegra abaixo:
Em que medida o consumo de álcool é impulsionado pela propaganda?
A gente já sabe que o consumo de álcool é impulsionado pela propaganda, por estudos em relação à cognição das pessoas quando elas são sistematicamente expostas a uma mesma propaganda. Essa repetição que acontece na televisão a cada intervalo faz com que o cérebro registre imagens, comportamentos, associações e obviamente promova o uso daquele produto. Então, um mecanismo cerebral, normal, de registro, que é a nossa memória, nos diz que propaganda influencia o uso do produto.
Essa influência é maior em alguma faixa etária?
Não conheço nenhum estudo que mostrasse isso. Não tenho essa evidência científica, mas me parece que a exposição é igual. A diferença é que a criança registra de uma forma e o adolescente de outra, por exemplo. Aí entramos em uma outra questão, que é o conteúdo da propaganda. Elas são endereçadas para diferentes públicos. Então, existe propaganda para crianças, que serão mais registradas (que será mais registrada) por crianças. É lógico que se um adulto assistir, ele também vai registrar. Propagandas para adolescentes, com um conteúdo mais sexualizado, de mais impacto, virilidade, masculinidade, vão atingir mais esse público, que está nessa fase do psicodesenvolvimento. O conteúdo é um fator muito bem estudado por quem produz e que vai sim sensibilizar diferentes amostras populacionais, em diferentes faixas etárias.
Houve uma época em que as propagandas de cerveja tinham bichinhos, tartaruguinhas, sirizinhos. Aquilo não é para adolescente nem para adulto. É lógico que registrávamos, mas não com o registro contextual, porque era direcionado para crianças.
Temos estudos nacionais e internacionais que mostram que as crianças expostas a filmes violentos ficam mais violentas quando vão desenvolver alguma atividade no mesmo dia ou no dia seguinte. A gente já sabe que isso influencia mesmo. Não é "achismo", é ciência.
Foi baseado nisso que se estruturou o movimento Propaganda sem Bebida?
Exatamente. Baseado em evidências, que são essas pesquisas e também no aumento do consumo por jovens. É lógico que um dado epidemiológico, que não tem nada a ver com a propaganda, também nos diz que tem alguma coisa aí, e a propaganda é um dos fatores. As pesquisas que mostram a prevalência do fenômeno, isto é, jovens e adolescentes estão bebendo cada vez mais cedo e cada vez mais pesado, mostram que tem mais fatores influenciando. Um deles é a propaganda. Não é uma causalidade única, mas é um forte fator de influência no consumo de álcool.
Se for devidamente implementada, a MP 415, que proíbe a venda de bebidas alcoólicas nas estradas, será efetiva na prevenção de acidentes?
Sim. Pelos diferentes estudos sobre beber e dirigir, medidas de restrição e controle social para esse fenômeno, sabemos que quando se controla o consumo e o acesso diminui há diminuição das conseqüências. É diminuir acesso, a bem da verdade. Tanto faz se é na estrada, nos supermercados. Quando se diminui o acesso ao produto, diminuem as conseqüências do uso desse produto. Na estrada, está totalmente ligado com beber e dirigir. A gente não tem a menor dúvida de que diminui.
Como reagiu o Presidente da Câmara dos Deputados ao receber as 600 mil assinaturas favoráveis ao PL 2733/08?
A recepção foi muito boa. Todas as pessoas, quando a gente traz à luz da discussão as evidências científicas, se mostram muito interessadas e se comprometem, pelo menos pessoalmente, a pressionar para que isso seja aprovado. É lógico que não estamos "dormindo de touca". Sabemos que a indústria da bebida está lá, firme e forte, com muito mais dinheiro e poder que a gente. Mas as pessoas estão se comprometendo, assim como aquelas 600 mil assinaturas. Acho que isso faz a diferença. Teve um debate muito legal e todos puderam se posicionar. É lógico que nós, da comunidade científica, usamos argumentos científicos, que são o nosso diferencial. A sociedade civil, que também estava representada, usa seus argumentos. Cada um usou seus argumentos e isso criou um consenso de que todos que estavam ali, inclusive os políticos, pensavam do mesmo jeito.
Só tem um senão. Os três (Arlindo Chinaglia, José Gomes Temporão e Tarso Genro) colocaram o outro lado. Quem se aprofundou mais nisso foi o ministro da Justiça, que nos mostrou o quanto essa discussão é profunda, quando ele lembrou que há momentos em que temos de ponderar. Sabemos o outro lado tem bastante poder de fogo. Muitas vezes, ao adotar uma medida "menos radical", sem abrandar o Projeto de Lei, a gente não perde a guerra. É interessante, porque não é o jeito que eu vejo. Eu vou assumir o papel da ciência, do médico, da pessoa que está preocupada com a saúde dos pacientes. O político fala: "vamos tentar minimizar o impacto e negociar". Vou dizer sinceramente: eu não negocio com a indústria, mas para isso tem o político. Eu não sento à mesa com a Ambev. Sou médica e não vou negociar. Agora, o político está lá para isso. O que eu acho que aconteceu: os políticos ouviram a ciência, ouviram a sociedade, de perto, olho no olho, e agora vão ter que negociar com a indústria.
É um momento em que a política começa a ser influenciada pela ciência?
É o meu sonho. Inclusive, nós saímos de lá com o compromisso de conversar com os colegas pesquisadores e pedir que eles remetam para os ministérios esses dados. São artigos, revisões, pesquisas, para cada vez mais fomentar o poder público a ter argumentos com a indústria. Não significa que eles não vão negociar, mas vão negociar com mais munição. É o meu sonho, que a ciência ande de braços dados com a política. Não sei se é possível. Com a indústria eu sei que não é. No Brasil, parecia que não era com a política também, mas dessa vez eu senti que a coisa foi diferente. Não achei que fui passear em Brasília. Parece que as assinaturas tiveram um impacto bom com eles.
Qual será o próximo passo?
Acho que, rapidamente, temos de fazer uma pressão, para que eles pensem bem nesse momento histórico, em que se pode melhorar, proteger nossas crianças e adolescentes, além dos indivíduos que bebem e dirigem, que muitas vezes são pessoas que nem sabem o que estão fazendo. Acho que tem de continuar a pressão, a curto prazo. A seguir, aprovado ou não, é continuar o trabalho. É preciso manter o contato para que as pessoas que fazem e aprovam as leis saibam das pesquisas que tratam desses graves problemas de saúde pública, que são as dependências de álcool e tabaco. A relação tem de ser institucional. É preciso criar uma comunicação permanente entre comunidade científica, sociedade civil organizada e classe política. É isso que faz a diferença.