Publicado em: 01/06/2008
Com discurso parecido ao que a indústria tabagista usou em 2000, cervejarias, agências e emissoras lutam contra restrição da propaganda da bebida – que movimentou R$ 1 bilhão no ano passado
O projeto de lei 2.733/2008, enviado pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados, é dos mais sucintos. Tem oito linhas, nas quais propõe apenas uma mudança na lei 9.294, de 1996: quer classificar como bebidas alcoólicas todas aquelas com teor igual ou superior a 0,5 grau, em substituição à classificação atual, de 13 graus ou mais. Essa singela troca de números foi capaz de mobilizar uma vigorosa tropa de choque formada por industriais, agências de publicidade, emissoras de rádio e televisão e mais um bocado de lobistas do Planalto Central.
Em maio, eles forçaram o governo a retirar o pedido de urgência na votação do projeto, que, se aprovado, vai afetar um negócio quase bilionário: a publicidade de cerveja, cujo investimento saltou de R$ 180 milhões para R$ 962 milhões entre 2000 e 2008, dos quais mais de 80% foram para rádio e televisão.
Na prática, o projeto iguala a cerveja a bebidas mais fortes, como o uísque e a cachaça. Com isso, sua propaganda ficaria proibida entre 6 h e 21 h – o que, para o Ministério da Saúde, manteria os anúncios da bebida longe do alcance de crianças e adolescentes. Do ponto de vista econômico, a medida pode não apenas reduzir o volume de investimento nas propagandas convencionais, mas também afastar as cervejarias das cotas de futebol da televisão – em 2007, a AmBev pagou quase R$ 100 milhões à TV Globo para aparecer nos intervalos dos jogos.
Os argumentos contrários à proposta do Executivo são, em sua maioria, idênticos aos usados em 2000, quando se discutia a extinção da propaganda de cigarros. Na época, a Abert, representante das emissoras de rádio e televisão, lembrou que "todo produto lícito tem autorização legal para ser produzido e comercializado" e "o direito constitucional de ser anunciado". "[A cerveja] é um produto lícito para ser produzido, comercializado e anunciado, que gera empregos e impostos", disse, na semana passada, o presidente da Abert, Daniel Pimentel Slaviero.
No início da década, os contrários à proibição da propaganda de cigarro defendiam, como fazem hoje em relação à cerveja, a "liberdade de expressão comercial", que, por extensão, garantiria a independência da imprensa. "O setor de rádio e televisão vive do mercado publicitário. Num momento em que há uma série de outros projetos querendo restringir a propaganda de alimentos, medicamentos e produtos infantis, a restrição [à cerveja] seria um péssimo precedente", diz Slaviero. A posição é semelhante à que foi defendida pelo presidente da Associação Brasileira das Agências de Publicidade, Dalton Pastore, em recente entrevista à Gazeta do Povo.
O apego ao controle exercido pelo Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) também é o mesmo usado a favor do tabaco. No entanto, uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que, entre 16 regras do Conar, 12 são desrespeitadas – os anúncios avaliados têm apelo imperativo ao consumo, exploram o erotismo e relacionam a cerveja ao sucesso profissional, social ou sexual, entre outros.
A favor do anúncio de cigarro, os lobistas argumentavam, de modo idêntico ao que têm feito ultimamente, que a propaganda não induz os espectadores ao consumo e serve, na verdade, para que as diferentes marcas disputem entre si o mercado já existente, que evolui de acordo com a renda da população – e não conforme o investimento em propaganda.
Prova disso, alega o superintendente do Sindicerv (representante das cervejarias), Marcos Mesquita, é que o consumo nacional cresce muito menos que a publicidade. Entre 2000 e 2007, período em que o investimento em anúncios quintuplicou, o consumo subiu 26% – passando de 82,3 milhões para 103,4 milhões de hectolitros, segundo o Sindicerv. Mesquita acrescenta um argumento que, para ele, é o mais importante: "Além de sermos contrários à restrição porque viria em prejuízo aos nossos negócios, julgamos que a medida não terá qualquer eficácia em relação aos benefícios esperados, como a redução do consumo abusivo, da violência e dos acidentes provocados pelo excesso de álcool".
Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad/Unifesp), a semelhanças dos argumentos a favor da publicidade do cigarro e da cerveja é motivo para proibir os anúncios de álcool, como foi feito com os de tabaco. "É comprovado que o número de fumantes no Brasil caiu desde a proibição. É o que deve acontecer com o número de dependentes do álcool."