Publicado em: 28/10/2008
Novas regulamentações focam a atuação de profissionais em eventos e pesquisas de fabricantes de remédio

Novas regulamentações em discussão ou em implantação no Brasil e nos Estados Unidos estão buscando trazer alguma ordem nas relações entre médicos e fabricantes de medicamentos. A proposta é debater a distribuição de brindes, almoços, viagens e outros presentes de fabricantes com o objetivo de evitar impacto indevido das benesses sobre a receita.
Em meio ao debate, os próprios médicos que atuam como porta-vozes (speakers) das empresas em lançamentos de estudos e produtos ou aqueles que se destacam como conferencistas em eventos das farmacêuticas fazem uma defesa de seu trabalho, mas também pedem mais controle e transparência para a relação, até para evitar mal-entendido.
"Congresso médico é ciência, não vejo nada de errado (o laboratório farmacêutico) levar o médico ao congresso. Não concordo é em levar a esposa do médico ou o congresso em Paris ser de um dia e o médico ficar dez dias. Nem tanto ao mar nem tanto à terra", resume o urologista Luiz Otávio Torres, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Urologia, que já realizou pesquisas, conferências e concedeu entrevistas como speaker de diferentes empresas farmacêuticas. "Acho sim que deveriam ser estabelecidas regras."
Nenhum profissional concordou em revelar à reportagem do Estado o total dos rendimentos obtidos por meio dos serviços prestados à indústria. Alguns justificaram que preferiam manter a privacidade, outros que não gostariam de ser os únicos a se expor, em meio a um sem-número de profissionais que prestam os serviços. Outros afirmaram não lembrar ou não saber exatamente os valores.
A atividade de speaker, conferencista e consultor não é ilegal, assim como aceitar presentes. Há, porém, o debate da questão ética, que passa pela influência que os presentes podem ou não ter sobre o tipo de atendimento prestado ao paciente. Recentemente, o caso de um médico que recebia por palestras e outros serviços para a indústria farmacêutica acabou na polícia após autoridades apontarem que ele teria prescrito remédios das mesmas empresas que o patrocinavam sem que alguns pacientes necessitassem.
Além disso, há relatos em periódicos científicos de casos em que o financiamento de pesquisas incorreu em resultados fantasiosos, apesar de grande parte dos trabalhos contribuir para o avanço das terapêuticas.
Reynaldo Ayer, conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, recorda que as parcerias entre médicos e indústria começaram com romantismo, como incentivo à difusão do conhecimento de nomes renomados da academia, até chegarem a profissionalização e abusos. "Temos de fazer um capítulo do nosso código de ética sobre a relação com a indústria, temos de ter a coragem", disse.
A primeira regulamentação específica sobre o tema no Brasil, no entanto, veio da própria indústria, que não divulgou ainda os possíveis infratores das novas normas.
Médico americano recebe até alimento; brasileiros defendem relação ética
No Brasil não há dados sobre a relação médicos-indústria farmacêutica, mas pesquisa realizada nos Estados Unidos e publicada no ano passado no New England Journal of Medicine apontou que 94% dos profissionais do país tinham algum tipo de relação com a indústria. A mais comum era o recebimento de alimentos no local de trabalho, mas 28% ganhavam por palestras e consultorias.
Conferencista em eventos da indústria e convidado em congressos, o endocrinologista e professor titular da Unifesp Antônio Chacra diz aceitar cada vez menos convites por falta de tempo e que vê com preocupação o financiamento de médicos inexperientes.
"Em determinada fase, é uma maneira de difundir assuntos. A educação médica continuada tem sido feita pela indústria, tendo em vista que os simpósios são caros e as sociedades médicas não têm recursos para organizá-los. Os conferencistas devem ser principalmente os acadêmicos, mas infelizmente o que se vê é que têm sido chamadas pessoas sem uma análise crítica", afirma o professor. Ele diz ser a favor de novas regras para a interação com a indústria, a mesma posição da colega Carmita Abdo. "Eu sempre pude divulgar dados levantados e aceitamos apoio de todos os tipos de indústria", diz a psiquiatra, que coordena projeto no Hospital das Clínicas da USP e foi chamada pela indústria para apresentar nos últimos anos diferentes estudos sobre sexualidade. "Existem jantares, não vou dizer que não vou. Mas meu diferencial é que falo do assunto, não do remédio."
"Ética não é elástica nem varia de acordo com a situação", diz a cardiologista Jaqueline Issa, speaker de remédio contra o fumo que não concorda com novas regras. "Essa regulação parte do princípio de que o médico não é ético", diz ela.
Código: O código de ética dos médicos brasileiros, que tem 20 anos de vigência, veta a interação financeira entre médicos e indústrias ou farmácias. Em resumo, nenhum profissional pode receber recursos para receitar. A infração dessa regra sujeita o profissional às punições previstas pelos conselhos de medicina
Revisão: Atualmente o código de ética dos médicos passa por revisão. Há quem defenda o veto a qualquer tipo de presente da indústria para os profissionais - o recebimento seria considerado infração ética. O novo texto só deverá ficar pronto no próximo ano
Conflito de interesse: Segundo regra do Conselho Federal de Medicina, na apresentação de trabalhos científicos o médico deve declarar eventuais conflitos de interesse, ou seja, se ele foi patrocinado por alguma indústria do setor farmacêutico
Discussões: Seguidos debates sobre a relação médico-paciente têm sido patrocinados pelas entidades médicas. Durante simpósio em 2004 em São Paulo, profissionais defenderam que o vínculo universitário era incompatível com a prestação de serviços à indústria, exceto em casos de pesquisas com real interesse acadêmico
Indústria: As empresas farmacêuticas multinacionais se anteciparam às conclusões desses debates e lançaram um código de ética próprio em maio deste ano. O texto prevê penalidades que passam de R$ 1 milhão para quem desrespeitar regras como a que veta o pagamento pelas empresas de viagens aéreas na primeira classe para os médicos
Resultados: Segundo a indústria, a auto-regulamentação já gerou denúncias, mas a Interfarma, entidade que reúne laboratórios multinacionais, não divulgou quem são os possíveis infratores
Nos Estados Unidos: Tramita no Congresso norte-americano o Physician Payments Sunshine Act, proposta para que, a partir de 2011, as farmacêuticas tenham de abastecer um banco de dados público sobre repasses a médicos que superem o limite de US$ 500 (aproximadamente R$ 1.160) anuais, sob risco de imposição de penas de mais de US$ 200 mil (cerca de R$ 400 mil). Diante da pressão, algumas farmacêuticas prometem já revelar gastos a partir do ano que vem, mas somente nos Estados Unidos
Ainda nos EUA: Alguns Estados, como Minnesota, já obrigam que os pagamentos sejam públicos
Normas fazem parte de código de ética lançado neste ano no Brasil pelas farmacêuticas
As indústrias farmacêuticas multinacionais que atuam no Brasil concluíram no início deste ano um novo código de ética que impede o patrocínio de brindes para médicos acima de um terço do salário mínimo (R$ 138 atualmente), viagens em primeira classe e financiamentos de discussões científicas em locais excessivamente turísticos, como resorts.
As normas foram criadas em maio deste ano e já estão disponíveis no site da Interfarma. São previstas penalidades de até R$ 1,6 milhão, de acordo com a infração ética.
Segundo a assessoria de comunicação da entidade, chegaram denúncias de desrespeito ao novo código, mas, questionada, a Interfarma informou que só o presidente do órgão, Gabriel Tannus, poderia dar informações sobre possíveis infratores.
Procurado desde a última quinta-feira à noite, Tannus não respondeu os contatos feitos pela reportagem. A auto-regulamentação também é uma preocupação de outros setores industriais. No País e em outros locais do mundo essas regras têm sido criadas, revisadas ou aperfeiçoadas sempre que há possibilidade de autoridades endurecerem as normas de determinado negócio.
A Interfarma destacou, no entanto, que a entidade criou o regulamento antes mesmo de os médicos iniciarem a discussão de um novo código de ética.
Em debate
O Conselho Federal de Medicina realiza revisão do seu código de ética, que tem 20 anos, e grupos defendem a proibição de qualquer tipo de regalia aos profissionais.
O vice-presidente do órgão, Roberto D'Ávila, destaca que o código atual já veta a interação financeira entre médicos, indústrias e farmácias - isto é, o mais grave, ganhar para receitar, mas a revisão deverá se aprofundar nessas questões. Além disso, os profissionais hoje são obrigados a declarar conflitos de interesse em apresentações durante encontros científicos.
"Mas, evidentemente, uma coisa é norma, outra é obedecer", diz D'Ávila, que destaca que nenhuma denúncia de interação indevida chegou ao CFM, última instância recursal dos médicos. "É muito difícil provar, ninguém dá recibo."
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) realiza desde 2005 uma consulta pública para regular a propaganda de remédios que poderá também limitar relações abusivas entre médicos e fabricantes. Mas, após sucessivos prazos, ainda não há data para a regra ser publicada.
"Se o patrocínio influenciasse a receita, só os laboratórios mais ricos teriam prescrição", diz o urologista Luiz Otávio Torres, speaker de farmacêuticas. "Alguém pode ser influenciável? Claro que sim. Mas isso não é uma regra."
A investida dos laboratórios está longe de ser foca exclusivamente nos profissionais mais experientes. Médicos residentes também atraem a atenção das empresas.
Não atuam como speakers nem emprestam seus nomes para avaliar os novos remédios que chegam ao mercado. No entanto, constituem uma importante classe responsável pelo atendimento direto e pela prescrição de medicamentos para pacientes da rede de saúde pública.
Foi-se o tempo em que as ações de marketing se restringiam a amostras grátis deixadas nos consultórios. Na luta por essa fatia do mercado, não faltam brindes e gentilezas, como o pagamento de inscrições em congressos. "Nós somos o público alvo deles (laboratórios), mas existe uma relação profissional", afirma Ricardo Biz, no segundo ano da residência de psiquiatria.
A ação dos propagandistas - os responsáveis pelo contato com os médicos nos consultórios -, porém, surte efeitos. "Com certeza, não é isso que vai influenciar a decisão terapêutica, mas o remédio do laboratório que dá mais informações sobre seu produto vai ser o mais familiar para você", afirma.
O médico dá um exemplo. "O diclofenaco é o princípio ativo do Cataflam, mas ninguém o chama dessa forma", diz. "Todos chamam de Cataflam pela influência do marketing."
Sua colega de residência, Heloísa Helena de Aquino Heber Medina concorda, mas ressalta que a opção será sempre do médico, independentemente da pressão dos fabricantes. "A decisão pela indicação de um determinado medicamento nunca pode ser do laboratório", diz.
Para a cardiologista Jaqueline Issa, do Instituto do Coração (Incor), não é o fato de o médico ser experiente ou não que vai decidir a atuação dos laboratórios. "Você precisa ser ético sempre, não de acordo com a situação", diz. "Quem age de acordo com a conveniência não é ético."
Reserva
A posição do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp) sobre a relação entre os profissionais e os laboratórios é de "bastante reserva", afirma o presidente da entidade, Cid Carvalhaes. Para ele, toda forma de remuneração do médico que não seja resultado direto de seu trabalho é questionável e merece reflexão.
Bem menos aceitável, diz ele, são as relações que não se tornam públicas. Carvalhaes condena, por exemplo, a participação de médicos em congressos com as diárias pagas por laboratórios. Estímulos para alavancar vendas, jamais. "É inaceitável que alguém se beneficie de uma porcentagem do valor do produto por recomendar para o paciente", diz.