Dependência química tira 5 mil crianças de casa

Publicado em:  26/12/2008

Infância 

A definitiva casa provisória 

Na casa montada para uma brincadeira, Juliano*, 3 anos, projeta seus sonhos. "Aqui mora a mamãe, seu filhinho e o cachorro", diz. Para o menino, a casa de brinquedo bem poderia ser a dele, na vida real. Morador de uma das quatro casas-lares da Fundação Iniciativa, Juliano é o oitavo filho de uma usuária de crack que foi encaminhado para viver num abrigo. 

E o caso não é isolado. O menino faz parte de uma geração de crianças e adolescentes que deixaram seus lares porque seus pais são dependentes químicos ou de álcool. Essa é a segunda causa (15,9%) de abrigamento na infância e adolescência no Paraná, de acordo com um levantamento feito pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca-PR) em 2005 e publicado em 2007, o último disponível.

Na República de Meninas Nova Esperança, abrigo da prefeitura de Curitiba com capacidade para 30 adolescentes, Renata também sente na pele os efeitos devastadores das drogas para uma família. 

Ela será a primeira de seis filhos de uma dependente química a sair de uma instituição de acolhimento para ganhar o mundo. 

Renata já completou 18 anos, tem um bom dinheiro guardado na poupança e planeja dividir o aluguel de uma casa com uma colega da República. Há cinco anos morando no local com uma irmã mais nova, de 11 anos, Renata conta que aprendeu com os erros de familiares: uma de suas irmãs, com 15 anos, fugiu do abrigo e hoje cumpre medida socioeducativa numa instituição para adolescentes infratores. "Não quero cometer os mesmos erros da minha mãe e irmã. Quero trabalhar e ter minha vida, além de poder receber em casa minha irmã, nos fins de semana", comenta. 

Vínculo familiar 

Em 2005, quando o levantamento foi feito pelo Cedca, 3.786 crianças e adolescentes viviam nas 154 instituições para crianças e adolescentes existentes em 154 municípios do estado. Hoje, cerca de 5 mil meninos e meninas moram em instituições, segundo estimativa da Secretaria Estadual da Criança e da Juventude. Luciana*, 12 anos, é uma das inseridas nesse universo. Mora numa casa-lar da Fundação Iniciativa há cerca de um mês, apesar de residir em instituições desde os 8 anos de idade. "Já morei em tanto lugar que nem sei mais qual é a minha casa", diz. 

A menina é uma das crianças e adolescentes que vivem em abrigos, mas têm família e tentam recuperar os laços para retornar ao lar de origem. Esse grupo representa 56,3% dos menores abrigados, segundo o estudo feito pelo Cedca. "Minha irmã mais velha vai morar com a minha mãe. Também não vejo a hora de ir para casa", diz. A menina depende de decisão judicial e de avaliação de assistentes sociais para realizar seus planos. "O contato foi perdido com a mãe durante muito tempo. Agora elas estão se conhecendo", comenta a assistente social Célia Muinos Garcia. 

Apesar do alto número de crianças e adolescentes abrigados que mantêm vínculos com a família de origem, o casos de reinserção ainda são tímidos, segundo observa o coordenador do levantamento feito pelo Cedca, Valtenir Lazzarini. "A maior dificuldade é o trabalho de restauração de vínculo. A questão é até cultural, pois muitos pensam que o abrigo é o melhor lugar para a criança em situação de risco. Ainda faltam políticas públicas de apoio às famílias", diz. Para a assistente social Célia, o grande desafio está em tratar a dependência química dos familiares. "Primeiro é difícil os pais admitirem que têm a dependência. Quando conseguimos isso, temos de enfrentar a falta de vagas no sistema público de saúde", afirma. 

Mobilização

De acordo com a coordenadora de Proteção Social Especial de Alta Complexidade, Carla Cristine Braun, da Fundação de Associação Social de Curitiba, órgão responsável em gerenciar os 43 abrigos da cidade, a rede de proteção é acionada também nos casos de dependência química de pais ou responsáveis. "Mas ainda falta a mobilização de outros atores sociais", diz.

Já o coordenador de ações protetivas da Secretaria Estadual da Criança e da Juventude, Luciano Souza, afirma que, com a política da municipalização do abrigamento institucional, cabe ao órgão apenas fiscalizar as instituições e fazer o levantamento de recursos necessários. "O atendimento tem de ser de qualidade. A nossa indicação é que a passagem num abrigo seja a mais breve possível e que haja o fortalecimento da família de origem", diz. Apesar disso, o levantamento do Cedca mostra que cerca de 40% dos meninos e meninas que vivem em abrigos passam mais de dois anos nestes locais.

Medo da maioridade

“Faltam dois meses para eu completar 18 anos e ainda não pensei na hipótese de sair daqui. Chega a dar medo. Agora que passei no vestibular e estou matriculada em Direito na PUC [Pontifícia Universidade Católica do Paraná), fico mais tranqüila. Antes nem sabia se iria conseguir estudar, se conseguiria fazer faculdade e isso me deixava mais nervosa.

Há 3 anos e meio moro aqui e fui parar num abrigo porque fugi com meus irmãos mais velhos e me encontraram na rua. Nem penso na possibilidade de ir morar com a minha família. Nem contato com eles eu tenho. Mas sei que vou conseguir seguir minha vida. Talvez eu vá morar com uma colega, que também está para sair da República. Sei que minha saída não será de uma hora para a outra. Sonho em estar na faculdade.”

Depoimento de Adriana*, 17 anos, moradora da República de Meninas.

Abandono remonta ao século 18

O abandono ainda ocupa o topo da lista dos motivos que levam crianças e adolescentes a viver em abrigos – responde por 29,1% do total (veja quadro). O historiador André Luiz Cavazzani, professor da Universidade Positivo, fez um estudo sobre o abandono de crianças em Curitiba, que vai integrar o livro

De Portugal ao Brasil: uma história social do abandono de crianças, séculos 18 a 20, com lançamento previsto para o ano que vem.

Segundo Cavazzani, o abandono de crianças tem sido observado pela historiografia recente como prática desde o século 18, tanto no Brasil, como na Europa. A diferença, segundo o historiador, está na sensibilidade da sociedade. “A visão era diferente. Hoje a criança ocupa o centro da esfera familiar.”

Naquela época, as crianças eram abandonadas por serem fruto de relacionamentos extraconjugais ou por falta de condições financeiras dos pais. Para atendê-las surgiram as casas de roda, instituições mantidas por freiras com um local específico para receber bebês deixados pelas mães. Em Curitiba não existiram casas de roda, mas nem por isso as crianças deixaram de abandonadas. Aqui eram deixadas em frente às casas, principalmente de mães que haviam perdido filhos recentemente. “Culpar a mãe é algo complicado. Muitas vezes entregar a criança para outra família ou mesmo para um abrigo é a melhor coisa que pode ser feita naquele momento”, diz.

(*) O nome das crianças entrevistadas foi trocado para a preservação de suas identidades.

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