Publicado em: 02/02/2009
Ouvir vozes é menos incomum do que a maioria supõe. E não é só isso. Há diversos casos em que a pessoa ouve diferentes vozes, enquadradas em diferentes categorias – positivas, negativas e até mesmo úteis –, e pode querer tratamento para apenas algumas delas (as negativas), sem que as positivas ou úteis sejam afetadas. É o que explicou a pesquisadora holandesa Sonja Rutten em entrevista à Agência Notisa durante o 17º Congresso Europeu de Psiquiatria, realizado esta semana em Lisboa (Portugal).
A especialista faz parte de um grupo de atendimento especializado nesses casos, ligado ao departamento de psiquiatria do University Medical Centre Groningen, na Holanda, e apresentou um estudo sobre o assunto durante o encontro científico europeu. “Nosso objetivo é ajudar as pessoas a lidarem com suas vozes, tornando suas vidas mais prazerosas. Logo, se vozes consideradas como positivas pelo paciente não lhe causam qualquer prejuízo, nós não vemos problema no fato de ele querer preservá-las”, ressaltou.
De acordo com a especialista, essa é uma questão fundamental no tratamento dos indivíduos que procuram ajuda, pois eles, em geral, abandonam ou nem sequer dão início à terapia caso a vontade deles não seja respeitada. “Há cerca de duas semanas, por exemplo, uma nova paciente buscou nosso serviço e ela nos disse muito claramente: ‘eu quero preservar minhas vozes positivas. Se eu não puder mantê-las, eu não vou me submeter a qualquer tipo de terapia em hipótese alguma’. E assim foi feito”, disse.
A pesquisadora explicou que o programa de atendimento do qual faz parte foi especialmente desenhado para pessoas que ouvem vozes, levando em consideração que há um grande grupo que simplesmente não apresenta resposta aos medicamentos. “Nós orientamos os pacientes sobre o quadro (as vozes), mas não a partir de uma perspectiva médica, pois nós lidamos com as elas de uma maneira diversa. Nosso programa integra módulos diferentes, como, por exemplo, a terapia cognitiva comportamental, sem descartar a medicação, que é utilizada apenas com o consentimento do paciente”, afirmou.
Segundo Sonja Rutten, em linhas gerais, o programa busca sempre identificar as estratégias de enfrentamento mais eficazes para cada indivíduo, como, por exemplo, cantar ou falar com as vozes, literalmente, para que elas deixem o paciente em paz. “As pessoas podem se inscrever nesse programa para tratar apenas das vozes negativas e manter aquelas positivas. Em alguns casos, pode-se até mesmo estimular as vozes positivas a serem um pouco mais agressivas com as negativas, pedir ajuda para lidar com estas. Essa estratégia funciona em alguns casos”, disse.
Estudo
O interesse de algumas pessoas em preservar alguns tipos de vozes, observado na prática por Rutten, encontrou amparo nos resultados do estudo conduzido pela especialista e apresentado durante o congresso. Dos 196 pacientes sob atendimento analisados, mais de um terço manifestou desejo de preservar as vozes positivas – vontade também expressa por metade dos participantes com relação às vozes consideradas úteis.
De acordo com pôster sobre a pesquisa, atribuições de um poder protetor às vozes positivas foi a razão mais forte relatada para serem vistas como tal. No caso das vozes consideradas úteis, a principal atribuição foi a de um papel de conselheiro. Segundo a autora do estudo, as atribuições positivas e úteis dadas pelos participantes às vozes não foram a única razão associada ao desejo de querer mantê-las: ter controle sobre elas também foi significativamente relacionado à tal vontade. Sobre este ponto especificamente, mais da metade dos participantes afirmaram serem capazes de controlar suas vozes positivas e úteis.
A avaliação das vozes foi feita através de um questionário com 53 questões, desenvolvido especialmente para o estudo, intitulado Positive and Useful Voices – em português, “vozes úteis e positivas” – e respondido pelos próprios participantes. Outro dado interessante apresentado pelo estudo é que mais da metade dos pacientes afirmaram ter tido prevalência, ao longo da vida, de uma voz considerada positiva e outra útil. Além disso, entre aqueles que apresentavam ao menos uma voz positiva, mais de 70% afirmaram ouvi-la diariamente.
O estudo também identificou que as vozes úteis, em geral, dirigiam-se aos participantes diretamente, enquanto as positivas também falavam com os indivíduos em terceira pessoa em cerca de metade dos casos. Além disso, mais de 50% afirmaram que as vozes positivas soavam como se viessem de uma pessoa conhecida. “Além de identificarmos, mesmo que de maneira pouco significativa, que o número de vozes positivas tendia a diminuir com o tempo, nós também percebemos que a qualidade das vozes também variava. Havia momentos em que as vozes eram mais gentis, ou mais engraçadas, ou mais agradáveis. Eu acredito que essas vozes tenham alguma relação com os pensamentos do paciente sobre si mesmo ou das pessoas ao redor deles. É possível perceber que, quanto um paciente não se sente bem consigo, mesmo as vozes positivas não são tão positivas assim”, disse a pesquisadora. “Na maioria dos casos, as vozes estão ligadas a eventos traumáticos na infância, a inseguranças em relação à vida diária e/ou a uma baixa auto-estima”, acrescentou.
Ajuda
Na opinião da especialista holandesa, é fundamental que os terapeutas comecem a conversar com seus pacientes sobre o que as vozes dizem, o que eles pensam delas e qual é a relação estabelecida entre o indivíduo e a voz. “Nós identificamos que muitos pacientes interrompem a terapia porque eles possuem vozes que querem manter, as positivas e úteis, e se você não ouvir seu paciente nunca será capaz de saber o que o levou a largar o tratamento. É importante também respeitar os desejos deles”, afirmou.
Segundo Rutten, a maioria das pessoas atendidas por ela já havia tentado, sem sucesso, diversos tipos de tratamento. “Eles se apresentam muito incomodados com o fato de que os seus terapeutas não queriam ouvir o que as vozes diziam, por exemplo. É muito importante dar mais atenção a esses fatores”.