Os senhores das drogas

Publicado em:  23/06/2009

Criminalidade

 

O vale-tudo do narcotráfico rompe os limites da periferia, invade o Centro e traz à luz o perfil dos homens e mulheres que comandam o comércio de entorpecentes em Curitiba

  

Faz bem uns 15 anos o narcotráfico rompeu os limites da periferia para fincar pé na região central de Curitiba, fazendo do Largo da Ordem e adjacências a mais cobiçada vitrine de drogas da capital. As ruas do centro histórico despertaram a sanha da bandidagem, sobretudo à noite. Afinal, não representam ao viciado os mesmos riscos de uma incursão pelas traiçoeiras vielas das bocas de fumo das favelas. Junto veio o habitual rastro de sangue, já comum nos subúrbios. Essa irascível disputa pelo controle de território deu lugar a um desfecho trágico no último dia 4 e suscitou uma dúvida: quem, afinal, são os senhores das drogas em Curitiba?

À noite, quando a Polícia Civil invadiu um apartamento no Centro atrás de Hirosshe de Assis Eda, o Japonês, seis foram presos, mas na troca de tiros Hirosshe, uma mulher e um policial morreram. Num vale-tudo, Japonês queria dominar o comércio de drogas no anel central, em áreas de trottoir de prostitutas e travestis. Ao grupo dele atribuem-se sete mortes só neste ano, quatro delas de travestis. Dois viciados inadimplentes foram esquartejados. Japonês era, em grande medida, o retrato dos traficantes curitibanos. Parecem tão cruéis quanto Fernandinho Beira-Mar, que mandava retalhar inimigos, mas perdem em importância quando comparados ao popstar do tráfico nacional.

Apesar da fama, Beira-Mar ocupava apenas o terceiro nível numa hierarquia do narcotráfico internacional, segundo escala considerada pela polícia de alguns países para medir a importância de um traficante. No primeiro nível estão os chefões internacionais, colombianos como o lendário Pablo Escobar, morto em 1993. No segundo, transportadores que negociam grandes lotes de cocaína diretamente com os cartéis da Colômbia, estágio a que poucos brasileiros chegaram. Um nível abaixo, Beira-Mar era um intermediário que comprava algumas dezenas de quilos e distribuía para pequenos traficantes, os do quarto nível.

É desse quarto nível a predominância dos senhores das drogas em Curitiba, aqueles que atendem diretamente aos viciados na região central e nos bairros de periferia. A julgar pelas prisões feitas pela polícia nos últimos dois anos, em Curitiba prevalece o traficante do sexo masculino, entre 25 e 40 anos, da periferia, de baixo nível de escolaridade, geralmente ex-presidiário. Enquadrado nesse perfil, aos 34 anos, Japonês era ambicioso, mas faltava traquejo para os negócios do tráfico. Queria exclusividade no repasse de drogas aos usuários na região central, mas deixava rastros ao matar concorrentes e viciados inadimplentes.

Ao receber a informação de que uma prostituta seria a próxima vítima, a Delegacia de Homicídios (DH) passou a seguir os passos dele. "O cara era inteiramente paranoico", conclui o titular da DH, o delegado Hamilton da Paz. Presa quatro dias após a morte de Japonês, a companheira dele, Paola Aparecida Miguel, 20 anos, disse à polícia que Hirosshi fumava crack o dia todo. Traficante com esse perfil é corriqueiro no cotidiano da DH, segundo o delegado. São usuários que para sustentar o vício passam a traficar, e alguns até ganham alguma importância nesse mercado conforme o volume e a diversidade de entorpecentes de que dispõem.

 

Escambo

A substituição de uma droga por outra é comum nos negócios do tráfico nas grandes cidades. Em São Paulo, Rio de Janeiro e cidades próximas às fronteiras essa mudança ocorreu faz tempo, chegando recentemente a Curitiba. Os traficantes têm abandonado a maconha pelo crack, substância de dependência quase instantânea. Dessa forma, o perfil do vendedor, especialmente o de pequeno porte, também mudou. Com a maconha, conseguia contabilizar os lucros; com o crack, ocorre uma espécie de escambo. O traficante atua para garantir a sua cota de pedras para consumo. E assim encerra-se o mito de que o traficante não usa o produto que vende.

"Os traficantes de médio porte têm a melhor droga do mundo e o melhor vendedor do mundo", diz Fernando Francischini, secretário municipal Antidrogas e integrante da equipe da Polícia Federal que em 2007 prendeu o mega-traficante Juan Carlos Ramirez Abadía. "Hoje ele (o pequeno traficante) não está nas ruas pelo lucro. Ele precisa da pedra, vende para consumir." Em Curitiba e região metropolitana existe a figura do traficante de porte médio, que domina um bairro ou parte de uma região. Seu poderio, no entanto, nem se aproxima dos grandes chefes do tráfico de Rio e São Paulo. "Apesar do domínio em sua região, o grande ponto de vendas está no centro da cidade", diz Francischini.

Conforme apurou a Gazeta do Povo, os cinco bairros com maior incidência do tráfico de drogas são o Centro, Cidade Industrial, Uberaba, Cajuru e Sítio Cercado, onde a relação tráfico-homicídio se acentua. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, 353 dos 589 homicídios registrados na capital em 2007 aconteceram nesses bairros, excetuando-se o Centro e incluindo-se o Tatuquara. Há explicações para a exclusão do Centro nessa lista macabra. "Os óbitos ocorrem nos bairros por problemas de saúde, porque o crack acaba com o pulmão do usuário, na disputa pelos pontos de venda e na cobrança de dívidas", explica Francischini.

É no Centro, contudo, que melhor se vê o frenesi do narcotráfico, como revelam as 75 câmeras de vídeo instaladas na região. Nas ocorrências registradas pelos aparelhos em 2008, o tráfico de drogas responde por metade dos 554 incidentes. É nesse ambiente de estreito controle que Japonês ousou estabelecer um reinado, enquanto a maioria, até os de alguma projeção, mantém-se em seus guetos nos subúrbios da capital ou na região metropolitana. Mesmo ali não há espaço para crescer. O secretário estadual de Segurança Pública, Luiz Fernando Delazari, atribui isso principalmente ao trabalho de repressão feito pela polícia paranaense.

"Além da Força Samurai da Polícia Militar, remodelamos e reforçamos a Divisão de Narcóticos, espalhamos os Núcleo de Repressão ao Tráfico de Drogas em todo o estado, fazemos o trabalho preventivo do Proerd e temos um programa chamado 181 Narcodenúncia, que colabora muito com a polícia para a retirada de circulação de vários traficantes", diz Delazari. Por isso, os traficantes de Curitiba têm menor poder ofensivo se comparados aos do Rio, por exemplo, onde o tráfico envolve criminosos com alto poder de fogo, com muito dinheiro capaz de dominar comunidades e pagar agentes públicos. Também contribui o fato de a cidade ser menor (o Rio tem 7,5 milhões de habitantes, Curitiba tem 1,9 milhão).

 

Prisões

As prisões mais significativas já feitas na capital paranaense revelam a ausência de um traficante capaz de dominar grandes regiões. Ao ser preso com mais nove comparsas, em julho de 2008, Paulo Cézar de Oliveira, o Paulinho Paiakan, então aos 34 anos, foi apontado pelo Centro de Operações Policiais Especiais (Cope) como o maior traficante de Curitiba à época. Era acusado de abastecer com maconha a capital, o litoral e estados vizinhos, ao ser preso na Vila Hauer quando recebia uma tonelada da droga vinda de Foz do Iguaçu.

No mês seguinte, foi presa em Almirante Tamandaré, região metropolitana, a mulher considerada uma das maiores traficantes do Sul do Brasil. Investigada por tráfico em Santa Catarina, Maria de La Paz Gaúna, 43 anos, foi presa quando recebia R$ 1 mil pela entrega de uma carga. Por mês, ela comprava em média dez quilos de cocaína e crack na Bolívia para vender a traficantes no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Ainda em agosto de 2008, a polícia prendeu Joana de Lima, 52 anos, com antecedente criminal por tráfico e tida como principal traficante do bairro Capão Raso.

Joana e mais quatro homens estavam com muita droga (crack, cocaína, haxixe, maconha) e farta munição (revólveres, pistolas, espingardas). Um mês depois, nova prisão. Desta vez no Bairro Alto. Apontado como um dos fortes traficantes da capital, Anderson Teodoro da Silva, 29 anos, estava com 28,8 quilos de crack, avaliados em R$ 280 mil. Ele estava em liberdade condicional e já respondia por crimes de homicídio, tentativa de homicídio e assalto.

 

Preço e perfil do vendedor criam divisão de classe

A diferença de preço entre uma droga e outra e o perfil do traficante de cada uma delas criaram uma divisão de classes no mercado de entorpecentes. Crack e maconha são mais populares entre usuários de baixa renda, consumidos na rua mesmo, enquanto ecstasy e LSD são mais comuns entre viciados das classes média e alta, em casas noturnas e festas rave.

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Crime depende de conivência ou omissão

O sucesso do crime organizado depende da conivência ou omissão das autoridades. O secretário municipal Antidrogas, Fernando Francischini, e o secretário estadual de Segurança Pública, Luiz Fernando Delazari, admitem que combater os "infiltrados" é essencial na luta contra o tráfico. Nessa batalha não é apenas a polícia que pode migrar para o outro lado.

Os esquemas são armados com policiais, juízes, promotores e outros agentes públicos. Para impedir o domínio do tráfico, é necessário prestar atenção à ação de quem joga nos dois lados. "São necessárias fiscalização constante, implacável e incansável e a punição rápida contra a atitude corrupta deste agente", diz Delazari. "Reduzir a impunidade é um dos caminhos para conter com mais eficiência a corrupção dos agentes públicos."

Conforme Francischini, há poucos corruptos na polícia, mas muitos omissos. "Muitas vezes, é omisso por sentir medo do tráfico", afirma. Nos cursos, os oficiais são incentivados a incluir nas investigações os policiais envolvidos com o tráfico. "É preciso separar o joio do trigo, até para mostrar à população que a corporação não compactua com isso."


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