Publicado em: 09/08/2009
Usuários de crack que deixaram a área após ação do Estado se espalham em grupos para outros pontos na região central. Consumidores de drogas agora perambulam pelo Minhocão e região da praça da República, Arouche e largo de Santa Cecília.
O aviso em letras brancas no asfalto do Minhocão é para motoristas: "Devagar Curva Perigosa". Mas à partir das 21h30, quando o acesso ao viaduto é restrito a pedestres, aqueles dizeres, no trecho que passa acima de Santa Cecília, parecem dirigir-se aos usuários de crack.
"Eles se tornaram andarilhos, não existe mais uma "base". Caminham completamente desnorteados por todos os lugares, em grupos enormes, da Barra Funda à Radial Leste", diz o segurança Chico de Assis, contratado por comerciantes e moradores da rua Sebastião Pereira, que fica em uma área ao redor do viaduto, para afugentar viciados. "Não dá para o cara sair do prédio de manhã, ou abrir o bar, o banco, com aquela gente amontoada ali na porta."
Além de subir o elevado pelo acesso que desce para Santa Cecília (região central) e também pelo que desemboca na rua Helvétia (idem), os usuários, ou "nóias", agora caminham a esmo pela vizinhança da praça da República, dos largos do Arouche e de Santa Cecília, e em vários pontos da avenida São João -todos bem distantes da "original" cracolândia, cujo perímetro abrange as redondezas da praça Júlio Prestes (até a avenida Ipiranga); ruas Eduardo Prado e Conselheiro Nébias.
Uma das consequências dos deslocamentos é o aumento do lixo que normalmente os craqueiros reviram atrás de algo vendável (para a compra de mais pedras) e que serve também para camuflar a droga, quando a polícia aparece. O lixo revirado é encontrado em mais calçadas, uma vez que eles caminham por mais lugares.
A Subprefeitura da Sé, responsável pela coleta, afirma que a quantidade de lixo (se estiver ensacado ou espalhado) é a mesma -e que, portanto, não é possível medir diferenças.
Recuperação do centro
O movimento itinerante dos craqueiros coincide com o início da Ação Integrada Centro Legal, deflagrada no dia 22 de julho pela prefeitura, governo do Estado, Judiciário e Ministério Público. A intenção da iniciativa, de acordo com as assessorias, é "recuperar o centro da capital paulista, e não somente a região da Luz".
"O sentido da ação não é policial. Não é para ficar imaginando que a gente vai prender alguém, não temos nem base legal para isso", diz a assessoria da Secretaria de Segurança.
O deslocamento dos "nóias" acontece sobretudo à noite. A polícia aparece, o grupo caminha enrolado em cobertores em direção às quadras vizinhas. A polícia vai embora. Ressurge. Mais uma caminhada.
"A migração era esperada desde o início da ação. São 126 agentes comunitários de saúde da prefeitura, sendo que 40 desses trabalham em horário diferenciado, até 22h", informa a assessoria da prefeitura.
Nas cerca de quatro horas que circulou no centro, a reportagem não viu nenhum agente próximo aos usuários.
Não há confrontos entre PMs e "nóias" -apesar dos olhares desesperados e do andar miúdo, maníaco, os usuários parecem mais fracos do que propriamente agressivos.
Na rua Helvétia, uma das poucas "bases" remanescentes, onde dezenas de usuários ocupam as calçadas, uma mulher de jeans, top branco, pulseiras tilintantes e bolsa grande grita "Em Brasília tá cheio!", com a voz convulsionada (depois se entende que ela se refere à traição de alguém que, no seu caso, prometeu a ela uma pedra).
Na quinta-feira passada, um grupo de mais de cem usuários se aglomerava na porta do prédio dos Correios que fica na esquina da avenida São João com rua Aurora. O carro da polícia chegou. Todos caminharam, sem pressa, para a vizinha rua Joaquim Gustavo, que vai da Aurora à praça da República.
De repente, a maior parte do grupo ficou em pé, como quando um técnico de futebol reúne o time: é o que acontece sempre que o "vapor" chega com um "blocão" (pedra maior) e repassa pedaços -ou "biricos".
É só chegar. Todos parecem se conhecer, mas a socialização acaba com o efeito da pedra. Dependendo do "nóia", o trago pode ser chamado de "pedrada", "paulada" ou "pega".
No alto do Minhocão, usuários que já fumaram tudo o que dispunham procuram no chão algum "birico" perdido. Um deles se abaixa e olha bem de perto o asfalto, no movimento de quem perdeu a aliança no ralo.
Ele fica assim durante quase meia hora. Outros "nóias" vão chegando, mas, no desespero da falta, não dão importância ao colega. Em sua imprudência, sem medo de curvas perigosas, permanecem trafegando alucinadamente pela via elevada.
Para viciado em droga, descobrir o traficante de crack é impossível
Nove da manhã é a hora do "blocão" (pedra grande), explica César, 36, "nóia" assumido. Apesar do desatino geral na calçada da rua Helvétia, em Campos Elíseos (região central), onde mais de cem usuários de crack estão sentados, César parece tranquilo. "Acabei de dar uma paulada, mas você não diz. Dificilmente me altero."
Ele conta que o blocão logo é dividido em muitos pedaços e repassado.
"Às vezes eu mesmo chego com a pedra grande, que eu consegui por R$ 10; divido em 18 "biricos", vendo cada um por R$ 2 e já tenho o dinheiro de mais três pedras", calcula.
Como se a cadeia até o traficante fosse um labirinto interminável, e indecifrável, ele diz que no crack é impossível descobrir o traficante. "Ninguém sabe quem é, exatamente, o cara. As coisas vão chegando."
Cerveja no bar
Viciado há dois anos, César diz que experimentou o crack com um primo e que não sentiu a sensação forte que muitos dizem levar ao vício imediato. "A gente voltou a fumar na mesma semana, mas como quem toma uma cerveja no bar", lembra ele, que tem um filho de 12 anos, a quem não vê há um ano. Desempregado, ele diz que é "motorista autônomo".
Apesar da balbúrdia na calçada da Helvétia, César diz que as biqueiras (pontos de "nóias") seguem uma disciplina estipulada à distância pela facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Segundo ele, agressões físicas e roubo (entre eles) não são tolerados. "Os caras vão ter de conversar com um grandão."
A etiqueta do "nóia" manda que, à passagem de mulheres com crianças no colo, diga-se: "Olha o ar do anjo", para que todos recolham seus cachimbos. Cesar passou quatro meses num Centro de Detenção Provisória, por "pequenos delitos". "Sou contra roubar na rua. Pego só de quem tem muito", diz.
Para participar da chamada "ciranda dos nóia", ou o trânsito do "vapor" (o que repassa), não é preciso estar em alguma biqueira. A reportagem perguntou a um rapaz que caminhava na rua Vieira de Carvalho, bem longe do centro da cracolândia, se ele tinha visto usuários por ali. Foi o suficiente para que o jovem se pendurasse na janela do carro e oferecesse uma pedra. "Fala aí, mano, vai querer quanto?"
Americano defende liberação de drogas
Diretor-executivo da Aliança de Políticas para as Drogas diz que Brasil pode liderar uma mudança para legalização do consumo
Segundo Ethan Nadelmann, nunca existirá sociedade livre das drogas, com exceção dos esquimós, porque nada podem cultivar
Ao estrear um ciclo de palestras no Brasil, o especialista norte-americano Ethan Nadelmann, diretor-executivo da organização Aliança de Políticas para as Drogas, disse no Rio de Janeiro que o Brasil tem as melhores credenciais, entre os países da América Latina, para liderar uma mudança cultural que levará à legalização do consumo de drogas.
"Nunca existirá uma sociedade livre das drogas, com exceção dos esquimós, porque nada podem cultivar. Portanto, essa é uma discussão que tem que ser feita", disse Nadelmann, na sede do movimento Viva Rio.
Nadelmann acha que o Brasil está bem situado em relação à maioria dos países no cenário internacional no tema em discussão. Mas já esteve "mais otimista em relação ao governo Lula". Por quê? Viu como sinal negativo a nomeação, para a Senad (Secretaria Nacional Antidrogas), de um militar (general Paulo Roberto Uchôa). "Poderia ter sido, por exemplo, alguém da área de saúde pública", afirmou.
A leitura sobre ter um militar em tal posto é que o país está mais alinhado com uma estratégia de "guerra" contra as drogas, uma linha hoje muito criticada e em revisão em todo o mundo, no âmbito da ONU e também nos Estados Unidos.
Em um retrospecto histórico, Nadelmann lembrou que o fundamental, neste debate, não é sobre se as drogas fazem mal. "O que importa é quem consome." Traduzindo a visão norte-americana, resumiu: se pretos, pobres e imigrantes consumiam, era ilegal.
"Se o Viagra não tivesse sido feito pelo indústria farmacêutica e não fosse consumido pelos homens brancos poderosos, mas fosse feito por químicos ilegais e consumido por jovens negros, seria ilegal".
Nadelmann encerrou na semana passada uma palestra no Rio com a apresentação de uma pesquisa, encomendada pelo Ministério da Justiça, em que as pesquisadoras Ela Wiecko (UnB) e Luciana Boiteux (UFRJ) apresentaram a análise de 730 sentenças condenatórias em crimes de tráfico de drogas entre os anos de 2006 e 2008.
Conforme a Folha revelou, a principal conclusão é que a maioria dos réus é primário, foi preso sozinho e não pertencia ao comando das organizações do tráfico. Resumo: prende-se o varejo, mas o atacado continua no crime.
Experiente interlocutor do governo norte-americano, país no qual 15 dos 50 Estados aceitam o uso terapêutico da maconha, Nadelmann também abordou a importância de estratégias de marketing para tratar do assunto.
Algumas das estratégias apresentadas por ele foram:
1) Falar com os pais dos adolescentes, que querem a todo custo proteger seus filhos.
2) Não usar a palavra legalizar, pois, em tese, transmite a ideia de descontrole.
3) Sinalizar que a melhor forma de combater o tráfico é competir com ele, de maneira legal, mantendo sob o acompanhamento de regras o comércio das drogas, da mesma forma que acontece com o álcool e com o tabaco -mas sem os apelos da propaganda.
"Nossos países foram os últimos a abolir a escravidão, vamos trabalhar para que sejam os primeiros acabar com a proibição", com a ressalva, no entanto, de que essa deverá se necessariamente uma decisão mundial.