Saúde mental é coisa séria

Publicado em:  27/08/2009

Em tempos de crise econômica global e incertezas generalizadas, devemos permanecer atentos, particularmente, a tudo o que é essencial e antecede os momentos difíceis atuais. Estando ou não o país com "moral alta" internacionalmente, nossa atenção deve ser redobrada nos cuidados a tudo o que é fundamental, até para poder, honestamente, se sentir com "moral alta". Melhor dizendo: nossos afazeres, como profissionais de saúde, devem se manter acima de períodos históricos específicos.

Saúde mental, como parte da saúde em geral, é coisa básica e inerente ao respeito à Constituição que nos rege. As instituições médicas têm como uma de suas funções defender o acesso irrestrito aos serviços de saúde e, como decorrência direta, defender os direitos dos pacientes. Para isso, devem propor ações cientificamente embasadas para formulação de políticas públicas de saúde.

Órgãos públicos deveriam implantar tudo o que é necessário para a dignidade humana, incluindo a saúde, naturalmente sem esquecer a educação de forma ampla, é claro. Seria fundamental ainda que se utilizasse do conhecimento científico disponível para propor (e propiciar) políticas públicas de saúde.

Lamentavelmente, não é o que observamos cotidianamente. Vários exemplos podem ser destacados. Fiquemos com alguns fortemente ilustrativos das razões de nossas preocupações. Inicialmente, o número de leitos hospitalares para a psiquiatria: a portaria nº 1.101, de 12/06/2002, do Ministério da Saúde, estabelece o índice de 0,45 leitos por cada mil habitantes como o ideal para atender a demanda por internação psiquiátrica. No Brasil, a proporção está atualmente em 0,23. É um índice pior do que o encontrado em países como Israel (0,88), Uruguai (0,54) e Argentina (0,68). A falta de locais para internação de pacientes com transtornos graves, na fase mais aguda de suas doenças, é uma dificuldade verificada em todo o território nacional.

Nesta altura há que se fazer distinção cuidadosa entre o que se costuma chamar de "leitos psiquiátricos em hospital geral" e aquilo que conhecemos como Unidade Psiquiátrica em Hospital Geral. A criação de leitos psiquiátricos tem que ser feita com a devida integração com outros setores hospitalares. A instalação de uma unidade psiquiátrica não deve ser vista como a simples abertura de mais um setor especializado dentro do hospital. Ela deve representar a implantação de valores psicossociais na cultura médico-hospitalar. Na aceitação destes valores, diferentes aspectos são afetados (econômicos, administrativos e ideológicos, por exemplo).

Como nunca nos furtamos do debate, é preciso dizer que a origem do problema está na má gestão da política de saúde mental. A Lei Federal 10.216, de 06/04/2001, estabelece ênfase no tratamento de base comunitária, com acesso a todos os serviços e modalidades de atendimento necessárias ao bom prognóstico dos transtornos mentais. Tecnicamente, o texto é um avanço importante para a área no Brasil, que conviveu por anos com um modelo de atendimento centralizador e formado basicamente por hospitais de grande porte, que de fato não são a melhor opção terapêutica.

A Associação Brasileira de Psiquiatria foi uma das primeiras instituições a debater esse assunto, ainda na década de 80. À época, destacou a necessidade de discutir questões como a existência dos grandes (e, por vezes, ruins) hospitais psiquiátricos, a diminuição de leitos, a ampliação da rede ambulatorial e a criação de unidades psiquiátricas dentro do hospital geral. O grande número de artigos sobre o assunto nas publicações da ABP atesta a relevância destinada ao tema desde então. A elaboração das Diretrizes para um Modelo de Assistência Integral em Saúde Mental, comandada pela gestão anterior da ABP, com o Prof. Josimar França à frente, deu as linhas essenciais de ação e nós nos dispusemos a sustentar o diálogo técnico.

Para nós, que sempre estamos dispostos a dialogar com o poder público sobre a definição de políticas públicas eficientes para os portadores de transtornos mentais, é desalentador avaliar o trabalho dos responsáveis por colocar em prática as premissas da lei 10.216. O fechamento de leitos hospitalares sem a implantação de uma rede assistencial verdadeira, hierarquizada, com avaliação da eficiência e qualidade dos serviços oferecidos é francamente bizarro.

Pouco tem mudado em relação à assistência psiquiátrica nos últimos anos, respeitando, é claro, a desarticulação de serviços macro-hospitalares francamente inadequados e a criação dos chamados CAPS, que se desqualificaram amplamente na medida em que as autoridades exigiram destes serviços responsabilidades que tecnicamente cabem a outras formas de atendimento, como emergências, hospitais psiquiátricos adequadamente planejados e ambulatórios.

A Associação Brasileira de Psiquiatria manteve uma rotina de disponibilidades para a conversação técnica. Em agosto de 2007, as "Diretrizes para um Modelo de Assistência Integral em Saúde Mental no Brasil" foram entregues ao ministro José Gomes Temporão. Coincidentemente, esse é o marco inicial de uma série de compromissos assumidos e não cumpridos por parte do Ministério. Desde então, a única reunião entre o MS e representantes da ABP aconteceu no dia 25 março de 2008, sete meses após a apresentação do documento ao ministro.

Nessa audiência, foram definidos três focos de ação para o ano de 2008: residência médica, atenção básica em saúde mental e leitos psiquiátricos em hospital geral. No primeiro tema, um ano após a reunião, a única ação proposta pelo Ministério foi a participação de um representante da psiquiatria em um encontro da Subcomissão de Estudo e Avaliação das Necessidades de Médicos Especialistas.

Também não houve avanços no segundo item, que ficou a cargo da Coordenação de Saúde Mental. Além disso, o ministro se comprometeu a realizar nova reunião com os psiquiatras dentro de 30 dias. O encontro nunca foi realizado. A situação é mais grave, contudo, no último e mais urgente dos temas. Na audiência, ficou acertada a criação de um grupo técnico de trabalho para estudar e propor alternativas que reduzissem a carência de leitos e unidades psiquiátricas em hospital geral.

Na esperança de que o grupo seria realmente criado pelo Ministério, a ABP realizou no dia 18 de abril uma reunião com especialistas em políticas de saúde mental, para definir propostas e prioridades que pudessem orientar o trabalho da nova instância. Nesse encontro, verificou-se a necessidade de estimar a presença de psiquiatras no Sistema Único de Saúde, o que foi feito pela Associação durante o seu congresso anual. Além disso, no dia 7 de maio, enviamos uma proposta de trabalho para o grupo, com o objetivo precípuo de estudar e estimular a implantação de leitos psiquiátricos e unidade psiquiátricas em hospitais gerais.

Ignorando a disposição e o trabalho prévio da entidade, somente no dia 11 de setembro de 2008 foi publicada a portaria nº 1899, que criaria o Grupo de Trabalho sobre Saúde Mental em Hospitais Gerais. No texto, foi estipulado o prazo de 90 dias para a apresentação do relatório final com as conclusões do grupo. A coordenação das atividades seria da Área Técnica de Saúde Mental do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas do MS. Nenhum relatório foi produzido e foram realizadas somente duas reuniões, nos dias 9 de dezembro de 2008 e 28 de abril deste ano.

A prática psiquiátrica é farta de exemplos onde a tentativa de diálogo esbarra em muitos dificultadores. Nestes momentos a presença de uma "terceira pessoa" qualificada e legitimada ética, jurídica e tecnicamente torna-se essencial. No caso da Associação Brasileira de Psiquiatria em relação às medidas para o cumprimento da lei a presença do MP tornou-se imperiosa e absolutamente natural, afinal nos referimos à instância defensora dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Os direitos constitucionais da população são válidos tanto em tempos de bonança como de crise. Não podem ser tratados como um "faz de conta" pueril. As leis brasileiras garantem o acesso a tratamentos eficientes na área de saúde mental. É dever do poder público oferecer esses serviços. Saúde mental é coisa séria.

 


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