Corrupção: "mais eficaz do que fiscalizar é punir", diz representante da ONU

Publicado em:  28/08/2009

O representante no Brasil e Cone Sul do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), Bo Mathiasen, afirma que a punição é fundamental no combate a corrupção. Para ele, a participação da sociedade no acompanhamento dos gastos públicos, a transparência e o apoio do setor privado e da mídia são importantes, mas a sensação de impunidade é fator determinante para ampliar os índices de corrupção. "As pessoas respondem com penalidades. Tem que punir, tem que ter jurisprudência no sistema judiciário de que corrupção não é aceitável. Tem que haver uma implementação de uma legislação dura em cima da corrupção", afirma Bo, que assumiu a coordenação do UNODC no Brasil e Cone Sul em junho deste ano.

Em entrevista exclusiva ao Contas Abertas (CA), o dinamarquês também enumerou a conscientização e mecanismos de prevenção e transparência como ferramentas úteis no enfrentamento à corrupção. O representante comentou sobre a impunidade para crimes de colarinho branco, a corrupção no Brasil, os índices de percepção da corrupção mundial, transparência, legislação, penalidades , a participação da imprensa e da sociedade civil, além do apoio do setor privado no enfrentamento de crimes ligados à corrupção.

Bo destacou a participação da sociedade civil, que pode criticar, observar e até sugerir uma maneira melhor e mais eficiente de ação. "Mas não são todos os países que têm uma sociedade civil muito ativa", pondera. Para ele, a sociedade participativa é fruto da democracia e mobilização. "Então, um país que tem certo grau de democracia mais avançado também teria um interesse maior, uma participação civil mais ativa", assegura.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Contas Abertas - A corrupção mundial é estimada em torno de US$ 1 trilhão, ou 2% do PIB do planeta, segundo estudo do Banco Mundial. Diante da relevância do valor, como os países poderiam agir juntos no combate à corrupção?

Bo Mathiasen - A ferramenta mais importante que os países têm à disposição é a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, assinada em 2003, e que já conta com a adesão de 140 países. A convenção serve de referência para a atuação dos países, indicando diretrizes para o combate a crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas, peculato, apropriação indébita por parte de funcionários públicos, tráfico de influências, suborno, abuso de função e enriquecimento ilícito. Também apresenta formas de os países cooperarem em relação às investigações de crimes transnacionais, versando sobre extradição, embargo preventivo, apreensão e confisco, recuperação de ativos e proteção de testemunhas e de denunciantes.

Contas Abertas – Então, a Convenção é uma forma de unificar as atividades?

Bo Mathiasen – Um combate efetivo para o crime transnacional perpassa necessariamente por uma ação coordenada entre os países. É importante que os países estabeleçam canais formais de disseminação de boas práticas contra a corrupção. Já está certo criar o "International Anti-Corruption Academy" em Viena, que será uma academia internacional com parceria com a Interpol, UNODC, Banco Mundial e outras instituições, além da participação de governos. Entre os objetivos estão estudos sobre corrupção e capacitação de pessoas na parte de repressão e investigação tanto do governo como órgãos atuantes na área de transparência e monitoramento dos gastos públicos. O setor bancário também tem de participar. Eles receberão treinamento baseado em práticas concretas.

O papel das Nações Unidas não é atuar diretamente na implementação da convenção, mas servir de apoio técnico aos países nesse processo – o que vem sendo feito no Brasil por meio de parcerias, principalmente com a Controladoria-Geral da União, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Contas Abertas – O Brasil fica, em média, na septuagésima colocação no índice da Transparência Internacional, que mede o índice de percepção da corrupção em países do mundo. Esse estudo tem repercussão mundial e poderia determinar, por exemplo, investimentos estrangeiros nos países onde a corrupção é maior?

Bo Mathiasen – Há muitas críticas ao uso dos índices de percepção da corrupção como mensuração desse fenômeno, principalmente quando se faz a comparação entre países por meio de ranking. Entretanto, como é muito difícil medir a corrupção de forma direta, o índice de percepção acaba se tornando uma ferramenta importante. Mas estamos trabalhando junto com outras entidades para desenvolver um mecanismo capaz de medir a corrupção.

Claro que a imagem que um país passa em relação à corrupção ao mercado internacional acaba sendo fator de influência no momento de se obter investimentos estrangeiros. Além dos índices de percepção, há estudos que mostram o outro lado da moeda: o grau de transparência do orçamento público. Um estudo publicado em fevereiro deste ano pelo International Budget Partnership - IBP (Parceria Internacional de Orçamento, em português), ONG com sede em Washington, mostrou que o Brasil é o 8º país do mundo em transparência do orçamento público, o melhor desempenho entre os países da América Latina e BRICs – ficando atrás apenas da África do Sul entre os países em desenvolvimento.

Contas Abertas – Segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a corrupção no Brasil deve gerar prejuízos de US$ 10 bilhões por ano. O valor é superior, por exemplo, à soma de orçamentos globais dos ministérios da Cultura, Ciência e Tecnologia, Esporte, Turismo e Meio Ambiente. A corrupção no Brasil é reversível?

Bo Mathiasen – Em termos globais, o Brasil mantém, há muitos anos, uma posição intermediária no que se refere à corrupção. Entretanto, é um dos países que mais vem atuando em ações de combate a esse problema, o que nos motiva a continuar trabalhando no sentido de enfrentar a corrupção.

Contas Abertas – Nos países onde a participação da sociedade civil é mais ativa, a corrupção tende a ser menor?

Bo Mathiasen – Não há dúvidas de que uma participação efetiva da sociedade civil em termos de controle e de demanda por transparência dos atos públicos tende a servir como um fator inibidor, ou pelo menos, que atue no sentido de minimizar os atos de corrupção. É preciso que a sociedade civil fale alto quando encontrar alguma coisa errada e junto com a imprensa livre denuncie ou, pelo menos, peça que seja investigado. Fica muito mais difícil fazer atos de corrupção em um ambiente transparente, mas tem que punir. A impunidade é um problema muito grande. Tem que punir, tem que ter jurisprudência no sistema judiciário de que corrupção não é aceitável. Tem que haver uma legislação dura em cima de corrupção.

Contas Abertas – Como a sociedade pode ajudar no combate à corrupção?

Bo Mathiasen – Cada cidadão pode e deve estar atento às ações de seus governantes, avaliando-os na hora do voto e cobrando de seus representantes posturas eticamente responsáveis. A sociedade civil organizada pode contribuir fazendo um trabalho de controle e de acompanhamento mais técnicos dos gastos públicos, tarefa muito difícil de ser realizada pela maior parte das pessoas. Por isso, são tão importantes os trabalhos de monitoramento, como faz o Contas Abertas.

Também o setor privado pode contribuir, por meio da adoção de práticas concorrenciais éticas e morais. Recentemente, o UNODC lançou, em parceria com o Instituto Ethos e com a CGU [Controladoria-Geral da União], o manual "Responsabilidade Social das Empresas no Combate à Corrupção", que aponta diretrizes e boas práticas que devem ser adotadas pelas empresas. O manual mostra, por exemplo, que a corrupção distorce a competitividade, estabelecendo formas de concorrência desleal, e deteriora os mecanismos de livre mercado, o que gera insegurança no meio empresarial, afugenta novos investimentos, encarece produtos e serviços e destrói a ética nos negócios, afastando qualquer possibilidade de lucratividade consistente no longo prazo. Mas não são todos os países que têm uma sociedade civil muito ativa. Algumas pessoas acham que é algo cultural, mas talvez tenha mais a ver com a mobilização que vem junto com a democracia.

Contas Abertas – À medida que as pessoas passam a acompanhar os gastos públicos há uma diminuição da corrupção, uma vez que as autoridades sabem que há mais fiscalização?

Bo Mathiasen – Acho que contribui. Mas se você tiver uma pessoa de alto nível que for punida e for colocada na cadeia por 10 anos por ter desviado um valor grande, acho que talvez tenha mais impacto. Acho que a punição é super importante para moralizar. Claro que cada um dos Poderes, dentro de um Estado, tem o seu papel a cumprir. O Executivo pode moralizar, pode prevenir, pode dar mais transparência, pode informar. Mas o Judiciário tem que punir. A impunidade manda um recado muito errado: mesmo se for descoberto e não for para a cadeia, a impunidade vai continuar.

Contas Abertas - Para coibir a corrupção o Judiciário tem um papel fundamental?

Bo Mathiasen – Muito tem a ver com as penalidades. As pessoas respondem com penalidades. Crime de colarinho branco, em muitos países, acaba sendo punido com uma punição leve se comparado com o do ladrão da esquina que roubou uma carteira. Se você roubar dinheiro no banco, com certeza você vai ter uma punição muito severa. Mas se você receber subornos e, com isto, impedir a construção de uma ferrovia, de escolas ou vários postos de saúde, é possível que nem vá para a cadeia. Certamente o ladrão da esquina vai. Este tipo de recado é muito difícil, porque manda uma mensagem para a sociedade de que o nível de sofisticação do colarinho branco tem a ver com a penalidade. Acho que isso é um assunto de ética, moral e justiça. Os Três Poderes têm o seu papel a cumprir.

Contas Abertas – Como está sendo a implementação da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção no Brasil?

Bo Mathiasen – O Brasil confirmou a adesão à convenção no dia 15 de junho de 2005 e vem atuando no cenário internacional de maneira a contribuir com os demais países em termos de cooperação internacional, assinando tratados bilaterais de extradição e contribuindo para processos investigativos internacionais sobre lavagem de dinheiro, evasão de divisas e crimes afins.

Em termos nacionais, vem desenvolvendo ações importantes, como o Portal da Transparência, o Projeto Olho Vivo, a capacitação de servidores, um programa de conscientização sobre corrupção voltado ao público infanto-juvenil, entre outras, algumas até servindo de modelo a outros países. Mas, evidentemente, ainda há muito trabalho a ser feito. Por exemplo, somente o Executivo está "abrindo" suas contas, ainda falta fazer o mesmo em outros setores do Estado. Há outras iniciativas como ensinar mais ética e moral nas escolas, trabalhando a cultura com os jovens, que serão os próximos gerentes deste país.

Contas Abertas – Tradicionalmente, as penalidades para criminosos que praticam corrupção são mais brandas do que, por exemplo, punição para sequestradores. O crime de corrupção e desvio de dinheiro público seria "menor" do que os demais?

Bo Mathiasen – Cada país possui legislações penais próprias que, de alguma maneira, refletem a relevância que cada sociedade confere a cada tipo de crime. A gradação de penas criminais segue tendências jurídicas e culturais dos países, e pertence à esfera de soberania de cada Estado. Cabe às Nações Unidas auxiliar os países a incorporar esses crimes às seus ordenamentos jurídicos e, mais do que isso, efetivamente utilizar mecanismos para coibi-los, independentemente de quais sejam as penas previstas para cada crime. Entretanto, observa-se que os crimes de "colarinho branco" são infelizmente menos penalizados em muitos países – embora o impacto desses crimes ao desenvolvimento possa ser muito negativo.

Contas Abertas – Há como caracterizar crimes de corrupção distintos como corrupção "pequena" e corrupção "grande"?

Bo Mathiasen – Como em qualquer tipo de crime, existem gradações, inclusive com penas diferentes para cada caso específico, dependendo das circunstâncias, de atenuantes e de agravantes. Mas a atitude moral de ter uma postura ética é absoluta e deve ser praticada por cada um. Nesse sentido, o UNODC lançou a campanha: "cada não conta", que estimula os indivíduos a combater a corrupção nos "pequenos delitos" do dia a dia. Uma pessoa que eventualmente for corruptível no pequeno âmbito, se estiver ocupando uma posição que a possibilite ser corrompida numa dimensão mais elevada, provavelmente também o faria. Por isso não se pode ser conivente com nenhum tipo de corrupção, por mais "inocente" que ela possa parecer. Juntos, a sociedade civil e os setores público e privado podem chegar lá. Vai demorar, mas vamos chegar lá.

 


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