Jogo viciado "Antes mesmo de alcançar o
cassino, só mesmo de ouvir o tilintar das moedas, eu me sentia prestes a
desfalecer"
(F. Dostoiévski, "O
Jogador")
É DIFÍCIL para um leigo
entender o que ocorre na cabeça de um jogador quando ele aposta. Porém, é ainda
mais complicado explicar o que se passa com certos congressistas de um país
repleto de graves problemas sociais que decidem aprovar a legalização dos bingos
e caça-níqueis.Desde a má notícia da Comissão
de Constituição e Justiça, que aprovou o projeto no último dia 16, as histórias
não param de pipocar no noticiário.
Há a do aposentado que jogava
todos os seus vencimentos, a do homem que, não satisfeito em perder o
automóvel, apostou o dinheiro da condução e voltou a pé para casa e a da mulher
que sente medo de andar pela rua Augusta, zona de concentração de casas de
jogos no centro de São Paulo, caso os letreiros luminosos dos bingos voltem a
piscar por ali.
A cena era comum nos grandes
centros: por volta das 14h, havia filas na porta dos bingos esperando as casas
abrirem. Será que, àquela hora, eles esperavam só por uma boa diversão?
Tão logo esses estabelecimentos
surgiram e ganharam espaço, muitos com patéticas decorações hollywoodianas,
foram criados laboratórios em universidades como a USP e a Unifesp para atender
a população viciada. As reuniões dos Jogadores Anônimos se tornaram
concorridas.
Os bingos foram banidos da cena
brasileira após vários escândalos. Reportagem deste jornal, de 2007, denunciou
que o lobby do jogo influía na Polícia Civil e na concessão de liminares
judiciais que mantinham as casas abertas. Em 2004, estourou o escândalo do
assessor Waldomiro Diniz, que foi filmado pedindo propina a um empresário (de
casas de bingo!) para financiar campanhas eleitorais.
É melhor pensar que a aprovação
da CCJ nada tenha a ver com a proximidade das eleições, mas é curioso que essa
história se repita neste momento. Mais inacreditável ainda é constatar que o
lobby da jogatina tenha mudado tão pouco o discurso de defesa dos caça-níqueis
durante quase dois anos de hibernação.
Eles continuam afirmando que
geram empregos e citam números impressionantes. Que absurdo... O jogo é um
mecanismo de concentração, e não de geração de renda. Se 20 pessoas se
trancarem numa sala, cada uma com R$ 50 no bolso, a renda do grupo será de R$
1.000. Ao fim de uma tarde de jogatina, a renda continuará a mesma, mas o dono
da banca sairá com a carteira mais cheia, enquanto os jogadores estarão mais
pobres.
A novidade do discurso é a
legalização da movimentação financeira. Ou seja: se oficializados, os bingos
deixariam de lavar dinheiro e passariam a ser monitorados. Ou seja: melhor é
deixar a raposa cuidar do galinheiro.Daria menos trabalho para
identificar quem matou as galinhas, certo? Talvez nós não tenhamos entendido
bem o argumento.
Deve ser porque ainda achamos que não lavar dinheiro deveria
ser obrigação de qualquer um.Porém, a pior bandeira do lobby
pelo retorno dos bingos é a proposta de destinar uma porcentagem da arrecadação
para a saúde. Se o dinheiro fosse realmente para o sistema público, até que
poderia custear o tratamento dos dependentes, cujo custo não é tão elevado.
O
problema são os danos invisíveis causados pelo jogo.Imagine o filho adolescente de
um jogador que, durante o período de compulsão do pai, envolveu-se com drogas.
Anos de vício no jogo podem causar danos irreparáveis a uma família.
Fora isso,
sabe-se que só 8% dos dependentes procuram tratamento.Mas, também aí, a história de
usar a salvação da saúde se repete como farsa. Quem já se esqueceu da CPMF,
criada para salvar o sistema público de saúde, que acabou nunca vendo a cor
dessa receita?Pois é, essa também, a exemplo
dos bingos, debitava nosso dinheiro sem a gente perceber, mas, pelo menos, não
viciava nem destruía famílias.
CARLOS ALBERTO BEZERRA JR. ,
41, é médico, vereador e líder do PSDB na Câmara Municipal de São Paulo.
HERMANO TAVARES , 42, é médico
psiquiatra e coordenador do Ambulatório do Jogo Patológico e Outros Transtornos
do Impulso, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
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