Jogo viciado

Publicado em:  26/09/2009

TENDÊNCIAS/DEBATES  

Os bingos devem ser legalizados no Brasil?  

NÃO
 

Jogo viciado
 

"Antes mesmo de alcançar o cassino, só mesmo de ouvir o tilintar das moedas, eu me sentia prestes a desfalecer"


(F. Dostoiévski, "O Jogador")
 

É DIFÍCIL para um leigo entender o que ocorre na cabeça de um jogador quando ele aposta. Porém, é ainda mais complicado explicar o que se passa com certos congressistas de um país repleto de graves problemas sociais que decidem aprovar a legalização dos bingos e caça-níqueis.
Desde a má notícia da Comissão de Constituição e Justiça, que aprovou o projeto no último dia 16, as histórias não param de pipocar no noticiário.

Há a do aposentado que jogava todos os seus vencimentos, a do homem que, não satisfeito em perder o automóvel, apostou o dinheiro da condução e voltou a pé para casa e a da mulher que sente medo de andar pela rua Augusta, zona de concentração de casas de jogos no centro de São Paulo, caso os letreiros luminosos dos bingos voltem a piscar por ali.

A cena era comum nos grandes centros: por volta das 14h, havia filas na porta dos bingos esperando as casas abrirem. Será que, àquela hora, eles esperavam só por uma boa diversão?

Tão logo esses estabelecimentos surgiram e ganharam espaço, muitos com patéticas decorações hollywoodianas, foram criados laboratórios em universidades como a USP e a Unifesp para atender a população viciada. As reuniões dos Jogadores Anônimos se tornaram concorridas.

Os bingos foram banidos da cena brasileira após vários escândalos. Reportagem deste jornal, de 2007, denunciou que o lobby do jogo influía na Polícia Civil e na concessão de liminares judiciais que mantinham as casas abertas. Em 2004, estourou o escândalo do assessor Waldomiro Diniz, que foi filmado pedindo propina a um empresário (de casas de bingo!) para financiar campanhas eleitorais.


É melhor pensar que a aprovação da CCJ nada tenha a ver com a proximidade das eleições, mas é curioso que essa história se repita neste momento. Mais inacreditável ainda é constatar que o lobby da jogatina tenha mudado tão pouco o discurso de defesa dos caça-níqueis durante quase dois anos de hibernação.

Eles continuam afirmando que geram empregos e citam números impressionantes. Que absurdo... O jogo é um mecanismo de concentração, e não de geração de renda. Se 20 pessoas se trancarem numa sala, cada uma com R$ 50 no bolso, a renda do grupo será de R$ 1.000. Ao fim de uma tarde de jogatina, a renda continuará a mesma, mas o dono da banca sairá com a carteira mais cheia, enquanto os jogadores estarão mais pobres.


A novidade do discurso é a legalização da movimentação financeira. Ou seja: se oficializados, os bingos deixariam de lavar dinheiro e passariam a ser monitorados. Ou seja: melhor é deixar a raposa cuidar do galinheiro. Daria menos trabalho para identificar quem matou as galinhas, certo? Talvez nós não tenhamos entendido bem o argumento.

Deve ser porque ainda achamos que não lavar dinheiro deveria ser obrigação de qualquer um.
Porém, a pior bandeira do lobby pelo retorno dos bingos é a proposta de destinar uma porcentagem da arrecadação para a saúde. Se o dinheiro fosse realmente para o sistema público, até que poderia custear o tratamento dos dependentes, cujo custo não é tão elevado.

O problema são os danos invisíveis causados pelo jogo.
Imagine o filho adolescente de um jogador que, durante o período de compulsão do pai, envolveu-se com drogas. Anos de vício no jogo podem causar danos irreparáveis a uma família.

Fora isso, sabe-se que só 8% dos dependentes procuram tratamento.
Mas, também aí, a história de usar a salvação da saúde se repete como farsa. Quem já se esqueceu da CPMF, criada para salvar o sistema público de saúde, que acabou nunca vendo a cor dessa receita? Pois é, essa também, a exemplo dos bingos, debitava nosso dinheiro sem a gente perceber, mas, pelo menos, não viciava nem destruía famílias.

CARLOS ALBERTO BEZERRA JR. , 41, é médico, vereador e líder do PSDB na Câmara Municipal de São Paulo.

HERMANO TAVARES , 42, é médico psiquiatra e coordenador do Ambulatório do Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

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