Publicado em: 29/09/2009
Artigo escrito por Ronaldo Laranjeira, professor titular de Psiquiatria
da Unifesp, é coordenador do Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas
(Inpad) do CNPq
Recentemente, divulgou-se a
opinião sobre o futuro da política de drogas no Brasil do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso, que defende maior liberdade de uso da maconha.
Fernando Henrique disse que um mundo sem drogas é inimaginável, expressando a
visão da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia.
Ao alegar que a
sociedade conviverá sempre com as drogas, defende com uma clara distorção da
racionalidade a ideia de que isso deveria tornar os usuários imunes ao sistema
criminal. Teríamos uma inovação na área dos direitos humanos, na qual todos nós
deveríamos ter o direito de continuar usando drogas ilícitas, independentemente
das consequências negativas para o indivíduo e para a sociedade.
Por essa
visão, seria um abuso dos direitos individuais qualquer constrangimento ao uso
de drogas.
A defesa do direito ao uso de
drogas é uma visão por demais simplista e não leva em consideração a
complexidade do uso de substâncias, em particular as modificações que o uso de
drogas provoca no sistema nervoso central. Parte-se do princípio de que todos
os usuários de drogas teriam plenas capacidades de decidir sobre o seu consumo.
Não podemos afirmar que todos os que usam drogas estejam comprometidos quanto
ao seu julgamento, mas podemos argumentar que uma parte significativa dos
usuários apresenta diminuição de sua capacidade de tomar decisões.
É
ilusório pensar que um dependente químico tenha total liberdade sobre o seu
comportamento e possa decidir plenamente sobre a interrupção do uso. É por isso
que os dependentes persistem no comportamento, com grandes prejuízos
individuais, para sua família e para a sociedade.
Se, por um lado, a opinião de
Fernando Henrique carece de legitimidade com relação aos direitos humanos
básicos, pois não existe um direito ao uso de drogas ilícitas, por outro, temos
aspectos do debate que não foram mencionados. Por exemplo: existe uma relação
entre saúde e direitos humanos.
As Nações Unidas e a Organização Mundial da Saúde desenvolveram recentemente o conceito de que todos deveriam ter o direito ao mais alto padrão de saúde possível (right to the highest attainable standard of health).
É um conceito relativamente novo, com não mais de dez anos.
Afasta-se de declarações vagas sobre saúde e responsabiliza a sociedade e o
sistema de saúde pela implementação de políticas que garantam a qualidade dos
cuidados.
Recentemente o Estado de São
Paulo deu um bom exemplo de garantia do mais alto padrão de saúde possível ao
proibir o fumo em todos os ambientes fechados.
que se garantiu nessa nova lei
não foi o direito de fumar, mas o direito de a maioria da população ser
preservada do dano da fumaça. Mesmo os fumantes têm o seu direito a um mais
alto padrão de saúde garantido ao ser estimulado a fumar menos. Esse foi um
exemplo de como é possível termos intervenções governamentais que preservem o
direito à saúde e ao mesmo tempo sinalizem uma intolerância ao consumo de uma
droga que mata um número substancial de cidadãos.
Experiências de sucesso em
outros países apontam na direção de combinar estratégias, do setor de Justiça
com o setor educacional e de saúde, para que se obtenham melhores resultados.
Leis que sejam respeitadas e fiscalizadas tendo como objetivo o bem comum. A
Lei Seca, que proíbe o beber e dirigir, identifica o indivíduo e impõe sanções,
também pode ser um exemplo, pelo número de vidas salvas até o momento. O fato
de se criar uma intolerância com o fumar ou com o beber e dirigir em nenhum
momento produziu desrespeito aos cidadãos que fumam ou bebem.
No Brasil não temos uma
política de prevenção do uso de drogas. Deixamos os milhões de crianças e
adolescentes absolutamente sem nenhum tipo de orientação sobre prevenção do uso
de substâncias. Fornecemos muito mais informações sobre o meio ambiente do que
com os cuidados de saúde. Temos uma boa política de prevenção ambiental, mas
não temos com relação às drogas. Não temos um sistema de tratamento compatível
com a magnitude do problema, deixando milhares de usuários completamente
desassistidos.
O tema proposto por Fernando
Henrique Cardoso é importante, traz a oportunidade de debatermos que tipo de
política construir para a próxima geração. Queremos uma sociedade em que o uso
de drogas seja um direito adquirido? Ou queremos uma sociedade muito mais
ativa, em que o sistema de Justiça funcione em sintonia com os sistemas de
saúde e educacional e possamos criar ações baseadas em evidências científicas
para diminuir o custo social das drogas?
Como também não existirá um mundo sem crimes ambientais ou sem
violações dos direitos humanos. Isso, no entanto, não é desculpa para descartar
o ideal e continuar a lutar pelo objetivo de um mundo melhor. Tolerar as
drogas, banalizar o seu consumo não é a melhor opção para uma sociedade que
valorize a saúde e os melhores valores de respeito à dignidade humana.