Publicado em: 07/10/2009
A lei antifumo, em vigor em São Paulo desde agosto, traz à tona
discussões sobre o significado e os simbolismos tanto do cigarro quanto do ato
de fumar
Em resposta a alguém que lhe
perguntou em certa ocasião qual era o significado simbólico de um charuto,
Sigmund Freud respondeu que, às vezes, um charuto é apenas um charuto. Mas
podemos acrescentar que, justamente por ser um charuto apenas “às vezes”, há
situações em que representa algo distinto. Na mitologia do próprio charuto ele
já foi, por exemplo, símbolo do poder, o que, em termos psicanalíticos, pode
ser chamado de “símbolo fálico”. Transportando essa questão para os dias de
hoje, o que representa o cigarro na recente discussão acerca de sua proibição
em locais públicos?
Em agosto entrou em vigor a lei
antifumo em São Paulo com a promessa de ser igualmente implantada em outros
estados. O argumento principal dos criadores da legislação é que muitos
fumantes passivos – aqueles que sofrem os efeitos do fumo por exposição à fumaça
do cigarro dos fumantes ativos – desenvolvem câncer de pulmão. Está comprovado
o fato de haver um elevado número de mortes por esse motivo.
Uma primeira representação para
o cigarro – aquele que mata – pode ser a de uma arma. Podemos usar nossa imaginação
e dizer que, antes da lei antifumo, o fumante (ativo) seria, no máximo, acusado
de homicídio culposo. Tratava-se de um delito provocado pela falta de cuidado
objetivo do agente, imprudência, imperícia ou negligência.
No entanto, não há a intenção
de matar. Mas agora a coisa mudou. Com a proibição de fumar para não espalhar
sua fumaça-veneno (também podemos atribuir símbolos à fumaça), o cigarro-arma
se tornaria a prova de um crime pior: o homicídio doloso. Este consiste na
vontade livre e consciente de assassinar alguém. Por isso, a implementação da
lei antifumo se faz acompanhar de um sistema de denúncias. O fumante-assassino
deve imediatamente ser interceptado para não causar danos a outrem.
Mas o cigarro também representa
o prazer. O próprio ato de fumar é prazeroso, dizem os fumantes. Acalma a
ansiedade para alguns, é estimulante para outros. Também existe o cigarro
depois da comida, do café e do sexo, que atua como complemento. Revela um
prazer que se prolonga. Reafirma a satisfação obtida, pois tem valor de uma
confirmação: “...sim, foi bom para mim”. Para muitos fumantes, acender um
cigarro é um ritual em que corpo e espírito se encontram: prazer do corpo e
simbolização desse prazer (no espírito) por meio do rito.
Curiosamente, a lei antifumo permite
o cigarro em cultos religiosos, mesmo em ambientes fechados, desde que isso
faça parte do ritual. Há que perguntar aos praticantes do culto o que o cigarro
ou o charuto simbolizam naquele contexto. Afinal, por que seria mais legítimo
do que o ritual particular de cada um na vida cotidiana?
Outra curiosidade é a permissão
para fumar nas áreas a céu aberto nos estádios de futebol. O cigarro tem aí um
poderoso efeito de acalmar a ira e a expectativa dos torcedores. É o
“sossega-leão”: funciona como calmante. Mas, se o time querido marcar um gol...
também se pode acender um cigarro-prazer e reafirmar a alegria do momento.
Nos ambientes de trabalho,
mesmo que existam áreas abertas e jardins, não se pode fumar. Dizem que a
fumaça se espalha e atinge os fumantes passivos. Talvez se espalhe de modo
diferente, do modo como se propaga no estádio de futebol. A catarse coletiva
justificaria o prazer. O trabalho, não. O cigarro-prazer, se fumado no ambiente
de trabalho, enfrentaria a lei que parece dar um recado: a nossa sociedade
exige produtividade. Onde há trabalho, não deve haver descanso. Mas existe – ou
melhor, existia – também o cigarro-escape. Se o cigarro-charuto representa o
poder,proibi-lo é uma forma de impedir a recuperação da autoestima. Sentir tensão,
pressão ou sofrer humilhação (situações comuns em ambiente de trabalho) exige
um recuo emocional, uma espécie de rearmamento. O cigarro-escape eratambém um
cigarro-enfrentamento.
Cabe à União editar normas
“gerais” sobre temas ligados à saúde. Estados e municípios editam normas
complementares. Independentemente da questão que se coloca sobre a autonomia
dos estados e municípios para estabelecer regras mais duras do que aquelas que
foram ditadas pela União, devemos atentar para o fato de que alguém legisla
sobre nossos corpos e nossos hábitos. “Biopoder” é o termo criado pelo filósofo
e historiador francês Michel Foucault (1926-1984), na década de 70, para
referir-se à prática dos Estados modernos de desenvolver um número sem igual de
técnicas destinadas à subjugação dos corpos e ao controle das populações.
A transformação radical dos
comportamentos por meio da abrupta imposição de novas regras não deveria ser
exigida sem uma discussão prévia acerca do significado individual e coletivo
desses mesmos comportamentos. O que significa o cigarro? O que significa fumar?
Não se pode impunemente elencar comportamentos aceitáveis ou inaceitáveis a
partir de uma moral do bem e do mal estabelecida com base no que se considera
saudável, ou não, exclusivamente do ponto de vista biológico.
O problema que se coloca não é
apenas o da luta pela saúde, mas o da maneira pela qual se exerce o poder. Como
e em nome do que esse poder é exercido? Fazer proibições em nome da saúde de
absolutamente todos é um equívoco denunciado por Foucault. É uma forma
extremamente sutil e, por que não dizer, perversa, de instalar o poder.
Autoridades da lei antifumo têm dito que o fumante não foi impedido de exercer
sua liberdade individual, pois, afinal, ele pode beber, comer, dançar e depois,
prazerosamente, fumar... dentro de sua própria casa. Um presidiário pode fazer
o mesmo em sua cela. Diríamos que ele está exercendo a sua liberdade
individual?
Consideremos a necessidade de
evitar que os fumantes passivos desenvolvam sérios problemas pulmonares e
venham a falecer. É legítimo buscar a saúde dessas pessoas e intervir de modo a
atingir esse objetivo. É igualmente legítimo possibilitar que eles circulem por
áreas amplas e não sejam constrangidos a conviver com fumantes. Mas a recíproca
é verdadeira. Poderia haver bares, restaurantes, cafés, boates e jardins para
um grupo e para outro. Se os “não fumantes” são maioria, que existam mais
estabelecimentos e áreas próprias a eles. Caberia aos donos desses lugares
optarem por sua clientela. Caberia ao governo criar incentivos para que alguns
estabelecimentos garantissem exclusividade para “não fumantes”.
A saúde da moral ficaria assim
garantida em vez de querer fazer prevalecer a moral da saúde, em que saudável
seria igual a “bom” e “não saudável” equivaleria a “mau”. O risco de a medicina
tomar o lugar da Igreja Católica em relação aos preceitos morais foi denunciado
há muito tempo. Isso não significa que a própria medicina e mesmo a população
tenham se dado conta disso. É fundamental entender que a saúde não compreende
apenas o organismo, mas que necessariamente leva em conta a mente que
representa, simboliza e dá significado aos fatos do corpo. Essa, sim, é uma
percepção saudável de si mesmo e da vida em sociedade. Em tempo: não sou
fumante.
Patricia Porchat é
psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo
(USP) e professora da Universidade Paulista (Unip).
Revista Mente e Cérebro - edição
201 - Outubro 2009