Publicado em: 25/10/2009
Traficantes perdem clientela da classe média e passam a explorar comércio nas favelas. Chegada de crack no Rio indica nova dinâmica no varejo de drogas; aumento da violência afasta os consumidores dos morros
As facções do tráfico nas favelas do Rio perderam nos últimos anos parte da clientela de classe média, e seus lucros dependem cada vez mais das próprias comunidades, o que provoca maior disputa por territórios entre elas.
Há dois sinais disso, segundo especialistas ouvidos pela Folha. O primeiro é a entrada do crack na cidade -a droga, consumida pelos mais pobres, era inexistente no Rio há cinco anos. O segundo é a exploração pelos traficantes, via taxação ou "concessão", de serviços como transporte alternativo (vans), distribuição de botijões de gás e mototáxi.
Essa nova dinâmica do varejo de drogas está ligada às últimas disputas de território entre quadrilhas das três facções do Rio -Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando (TC) e Amigo dos Amigos (ADA).
"O morro dos Macacos nunca foi ponto importante de vendas. Mas a redução do lucro aumenta a necessidade de buscar novas áreas", diz Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Violência Urbana da UFRJ.
Ele se refere ao caso de oito dias atrás, quando um helicóptero policial foi derrubado durante invasão do CV, que tentou tomar a favela de Vila Isabel (zona norte) dos rivais da ADA.
Exemplo citado por Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, ilustra a diversificação do negócio.
No Carnaval de 2008, faltou consumidor na "boca" da Mangueira (zona norte). Para se capitalizar, traficantes roubaram um caminhão de cerveja e avisaram os donos das biroscas da redondeza de que só podiam vender as deles quando acabassem as do "patrão".
Três fenômenos explicam o fato de parte da classe média do Rio ter deixado de "subir o morro" para obter drogas: o aumento da violência, com incursões policiais mais frequentes e traficantes mais truculentos; o aumento do uso de drogas sintéticas, como o ecstasy; e o tráfico operado pela própria classe média, com opção de pedir por telefone a entrega da droga.
Ainda existe quem compre na favela, em bailes funk ou por meio dos garotos que vendem nas ruas próximas das bocas de fumo. "Antes havia filas intermináveis. Hoje há compra nos bairros próximos", diz Misse.
O chefe da Polícia Civil do Rio, Alan Turnowski, diz que a prática de cobrar por serviços ainda é uma decisão do chefe do tráfico em cada área.
Um estudo da Secretaria de Fazenda do Estado que tentou medir a rentabilidade do tráfico apontou que a exploração de serviços "pode se tornar uma forma de diluir custos fixos".
Em toda capital, segundo margem ampla do governo, o lucro anual fica entre R$ 26 milhões e R$ 236 milhões. Os traficantes atuariam próximo ao seu custo de "manutenção".
Para PF, em SP, monopólio das drogas é do PCC
Diferente do carioca, traficante paulista não disputa áreas. A análise é do setor de inteligência do CGPRE (Coordenação Geral de Polícia de Repressão a Entorpecentes), da Polícia Federal
As análises do setor de inteligência do CGPRE (Coordenação Geral de Polícia de Repressão a Entorpecentes), da Polícia Federal, apontam que a principal diferença no tráfico de drogas entre o Rio de Janeiro e São Paulo está no número de facções criminosas que atuam em cada Estado.
Enquanto o Rio convive há anos com as disputas entre CV (Comando Vermelho), ADA (Amigos dos Amigos) e TC (Terceiro Comando), em São Paulo existe o domínio dos traficantes do PCC (Primeiro Comando da Capital).
Além disso, poucas regiões de São Paulo, como Santos, no litoral, têm os morros que caracterizam o Rio.
A PF sabe que, em comum, Rio e São Paulo têm apenas a origem da droga vendida em seus territórios. A maconha vem do Paraguai e 90% da cocaína tem origem na Bolívia.
Hoje, mesmo os poucos traficantes varejistas que não são "batizados" (ligados diretamente) no PCC têm de pagar uma espécie de imposto para ter autorização dessa facção para traficar em São Paulo. Caso o "bicho papão" não seja pago, o PCC toma com violência o ponto de tráfico -ao contrário do que ocorre no Rio, essa invasão não possibilita resistência.
"O aumento do número de facções criminosas já representa o aumento de violência e, considerando que essas facções são rivais e disputam o mesmo mercado, a conclusão é que a onda de violência crescente no Rio decorre, muitas vezes, de uma busca por mercado. São várias facções disputando o poder e espaço no tráfico de drogas", diz o delegado Umberto Ramos Rodrigues, do CGPRE.
Outra diferença entre o tráfico no Rio e em São Paulo, ainda segundo a PF, está na quantidade de crack comercializada. Em São Paulo, o PCC oferta ao mercado muito mais essa droga do que as facções cariocas.
No Rio, apesar da chegada do crack às bocas de fumo nos últimos três anos, as facções criminosas CV, ADA e TC ainda têm preocupação com o tempo em que terão o viciado como cliente -essa droga é muito mais devastadora do que a versão menos suja da cocaína.
De abril deste ano, quando o delegado Eduardo Hallage foi nomeado pela gestão de José Serra (PSDB) para chefiar o Denarc (departamento de narcóticos) com a missão principal de acabar com a corrupção nesse setor da polícia paulista, até setembro, foram apreendidos 434 quilos de cocaína, 1.263 quilos de maconha e 36.634 quilos de crack no Estado.
Aluguel de armas
No ano passado, a Polícia Civil de SP fez operações em Sorocaba (100 km de SP) e cidades vizinhas para combater uma disputa -na qual houve assassinatos- por pontos de venda de droga entre o PCC e o CRBC (Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade), quadrilha que tenta fazer frente ao domínio dos rivais.
Ao longo de 2008, segundo policiais de Sorocaba, ao menos 20 pessoas foram mortas, todas elas em ações distintas e nunca em confrontos como os ocorridos semana passada no Rio.
Enquanto as três principais facções criminosas do Rio também disputam poderio bélico, em São Paulo a hegemonia do PCC dispensa o emprego bélico e abre espaço para que os membros da facção direcionem suas armas a outros crimes.
Muitas vezes, para não ficarem paradas, as armas do PCC são alugadas para ladrões de banco e de carga. Podem render até 15% do roubo aos donos das armas. Ainda, em São Paulo não se veem traficantes ostentando armas de alto poder destrutivo, como fuzis e granadas.