Formação médica precisa de projetos para o longo prazo

Publicado em:  18/05/2010

 

A Associação Brasileira de Psiquiatria sempre defendeu o debate técnico formalmente estabelecido com as instâncias governamentais. Essa é uma postura prevista pelo próprio estatuto da instituição, como algumas de suas finalidades básicas: "contribuir para a elaboração da política de saúde mental e o aperfeiçoamento do sistema médico assistencial" e "contribuir para o progresso técnico-científico da Psiquiatria".

Para a ABP, é natural ocupar espaços onde se discute a psiquiatria. Isso define nossa identidade e propósitos. Mesmo que não sejamos formalmente chamados, lutamos por espaços onde deixamos claras nossas posições. Isso vale para Conferência Nacional de Saúde Mental (mesmo que, historicamente, este processo deva ter sua condução indagada) ou para reuniões sobre a formação de profissionais médicos para a assistência em saúde mental.

Outro ponto que nos define é o claríssimo embasamento técnico de nossas propostas, metodologia fundamentada, discussão possível em todas as etapas, avaliações isentas e discussão de resultados. No que diz respeito à formação de profissionais, a ABP mantém uma consequente luta por aprimoramento dos programas de Residência Médica, inclusive com uma bem sucedida luta pela ampliação do tempo de treinamento do médico residente em psiquiatria.

Recentemente, colegas e representantes de federadas manifestaram preocupação com um programa de formação profissional do Ministério da Saúde em parceria com o Ministério da Educação que visa preparar profissionais para atuar em regiões mais carentes. Estes treinamentos contariam com um "matriciamento" de instituições públicas ou universitárias conveniadas que já abrigam programas de formação.

Entendemos que formar profissionais para atuar em áreas mais necessitadas é louvável. Devemos expressar nosso contentamento, se comprovarmos que o Ministério da Saúde, finalmente, assume que importantes regiões do país são desprovidas de cuidados básicos em saúde mental. Ressaltamos ainda que a ABP reconhece como fundamentais os cuidados primários em nossa área. O treinamento de profissionais em serviço é usual em muitos países e pode ter real utilidade na garantia de atenção em todos os níveis.

Em sentido mais amplo, devemos lembrar também que a diretoria da ABP sempre defendeu que todas as ações profissionais devem ter fundamento ético, sustentação em evidências cientificas e experiência profissional e garantia de uma rede equilibrada, como determina a Organização Mundial da Saúde. Demonstramos isso ao lado do presidente da Associação Mundial de Psiquiatria em editorial do jornal Psiquiatria Hoje em novembro do ano passado. Nesse posicionamento, destacamos que as propostas da ABP, em consonância com as tendências mundiais e inspiradas na Lei, propõem balanceamento entre atendimento em nível hospitalar e assistência comunitária.

Ainda em relação à formação, é necessário questionar como serão escolhidos os locais para os treinamentos. Se a base de dados para a formatação do programa é o relatório da subcomissão de estudo e avaliação das necessidades de médicos especialistas no Brasil, subordinada à Comissão Interministerial de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde, devemos destacar que os dados devem ser avaliados com cuidado, por conta dos problemas metodológicos que destacamos à época em que o relatório foi divulgado: o material foi produzido com uma amostra reduzida de gestores de saúde e diretores de hospitais, sem considerar a opinião de profissionais da área. Assim, é possível que problemas como baixa remuneração, ausência de efetivo pla no de cargos e salários e as más condições de trabalho tenham sido referidos em menor amplitude do que a falta de programas de residência.

Também é crucial outra questão já anunciada por nós. Se o treinamento será realizado em serviço, é necessário que se crie uma rede de atendimento, ainda inexistente nas áreas mais necessitadas.

Nesse sentido, não podemos deixar de retornar a uma questão básica em atenção primária e psiquiatria: a saúde mental é uma área naturalmente complexa e envolve vários segmentos do poder público. A interdisciplinaridade inclui conhecimentos diversos e não pode ser utilizada como pretexto para excluir o conhecimento médico especializado, que é básico e essencial.

Atenção primária também deve ser feita com diagnóstico precoce de doenças, o que pode ser feito por médicos generalistas, sem esquecer a retaguarda de especialistas. Não podemos esquecer que casos complexos de doença mental são realidade, mesmo considerando sua prevalência. Em quadros mais frequentes, como depressão, transtornos de ansiedade e transtornos alimentares, a identificação e o tratamento precoces evitam complicações graves. Além disso, os índices de alcoolismo, riscos de suicídio e a alarmante epidemia do uso de crack em diversas regiões do país apontam para a importância da formação psiquiátrica, entendida aqui como a condição de atuar na atenção preventiva primária e no trabalho em equipe de diferentes profissionais.

Certamente, a ABP não se recusa ao debate. Por isso, estaremos amanhã na próxima reunião sobre o programa, convocada pela Comissão Interministerial de Gestão da Educação em Saúde. Nesse encontro, a participação da psiquiatria será baseada em nossa formação e nosso compromisso com todos. Indagaremos como o programa apresentado para as residências médicas se incluiria em um ainda não definido projeto de assistência em saúde mental que respeite as diversidades de nosso país. Nesse aspecto, consideramos a inegável democratização de acesso a serviços de saúde nestes mais de 20 anos de SUS, mas não podemos omitir equívocos.

Levantaremos ainda outras questões: qual a proposta de plano de cargos e salários para estes jovens profissionais, sem mencionar os já engajados, e esquecidos, no serviço público? Como o poder público propôs um treinamento para diferentes profissionais sem o projeto oficial para a formação de especialistas? O que nossas autoridades formularam para o longo prazo? Como pretendem avaliar os resultados?

Por fim, esperamos que a Comissão Interministerial responsável pelo programa esclareça o que se espera como participação da ABP a esta altura do projeto. Nós sempre soubemos fundamentar e avaliar tecnicamente nossas propostas. Por força de nossas definições estatutárias e dos nossos compromissos sociais, vamos a todos os encontros que pretendem tratar de nossa profissão, função social e do cuidado aos doentes. No mínimo, colhemos informações, antes não partilhadas, para discutir com a psiquiatria e a comunidade.

Formar profissionais equivale a formular projetos a longo prazo para todos nós. Isso é coisa séria demais para ser conduzida silenciosamente.

Artigo escrito pelo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), João Alberto Carvalho.

 


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