Segredo guardado a sete chaves

Publicado em:  13/06/2010

 

Saúde pública

Pesquisa revela o perfil da mulher que faz aborto no Brasil. Ela é casada, tem filhos, religião e costuma carregar sozinha o peso de sua decisão

Ninguém sabia quem era ela exatamente e o que pensava. Tratada pela lei como uma criminosa, era apontada como uma mulher desonrada e sem sentimentos. Uma pária. Lançada no último mês, porém, uma nova pesquisa está jogando luz à face da mulher que faz aborto no Brasil e mudando esse perfil imaginado. Ao contrário do que se pensava, ela é casada, tem filhos, religião e pertence a todas as classes sociais. A mulher que aborta guarda o seu segredo a sete chaves. E, embora não saiba, ela não está sozinha.

Uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já realizou ao menos um aborto na vida, o equivalente a uma multidão de 5 milhões de mulheres. É o que revela a Pesquisa Nacional de Aborto feita pela Universidade de Brasília (UnB), com o apoio da Agência Ibope Inteligência e do Ministério da Saúde. De acordo com o estudo, na faixa etária entre 35 e 39 anos a proporção é ainda maior: uma em cada cinco mulheres já fez um aborto. "A pesquisa mostra a magnitude do aborto no Brasil. Revela que há um problema de saúde pública a enfrentar. É preciso parar de varrer este tema para debaixo do tapete", afirma um dos autores do estudo, o professor do departamento de Sociologia da UnB Marcelo Medeiros.

Para a psicoterapeuta e professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Renate Vicente, a mulher que interrompe a gravidez tende a esconder o aborto da sociedade e também de si mesma. "Quando você faz algo que não é exatamente o seu projeto de vida, fica em conflito interno. Não quer lembrar que fez algo contra o que acredita: o direito à vida. Então acaba vivendo como se não tivesse feito para se esquivar do conflito interno", explica.  

Colocados os números e conhecidas essas mulheres, a questão agora é o que fazer com elas e como enfrentar o problema. O Código Penal brasileiro prevê pena de detenção de um a três anos para a gestante que provoca aborto. A exceção é para os casos em que a gestação representa risco à vida da mulher ou quando decorre de estupro – o aborto não deixa de ser crime, mas não há punição nestas situações. "Nós vamos mesmo querer colocar 5 milhões de mulheres casadas, mães e religiosas na cadeia?", questiona Medeiros. "A mulher que faz aborto no Brasil é a mulher comum: a sua mãe, a sua irmã, a prima, a vizinha. Todo mundo conhece alguém que já fez um aborto e com esse perfil", diz.  

Dentre o total de mulheres que declaram na pesquisa já terem feito pelo menos um aborto, 64% são casadas e 81% são mães. Pouco me­­nos de dois terços das mulheres que fizeram aborto são católicas, um quarto protestantes ou evangélicas. A pesquisa também revela que cerca de 60% das mulheres fizeram seu último (ou único) aborto no centro do período repro­­du­­tivo, isto é, entre 18 e 29 anos, sendo o pico de incidência entre 20 e 24 anos. A classe social não interfere na decisão.

Para a doutora em Microbiolo­­gia, professora do Instituto de Biologia da UnB e presidente do movimento Brasil sem Aborto, Lenise Garcia, legalizar a prática não resolve o problema. "Se o aborto é o problema, não pode ser a solução. A vida é o maior de todos os direitos e ela começa na concepção. Qualquer livro de Embriologia diz isso. No momento da concepção já estava definido que eu seria uma mulher, com o nariz da minha mãe e com os olhos do meu pai", argumenta a ativista, que no fim do mês passado esteve em Curitiba para lançar o comitê local do movimento. "Todos que estão aqui, inclusive os que defendem o aborto, só estão aqui porque não foram abortados", diz.  

Segundo ela, nos países em que a prática é legalizada, ela acaba por ser banalizada. "O aborto acaba sendo feito meio sem pensar e depois faz mal para a mulher que terá problemas psíquicos, depressão. Na Espanha, por exemplo, é comum encontrar mulheres com 18 a 20 anos que fizerem dois ou três abortos. Ela acaba fazendo, muitas vezes, pressionada pelo ho­­mem. Depois ela carrega a carga de ter feito o aborto sozinha. Se a mulher se sente amparada, a tendência é ela desistir do aborto", afir­­ma. "O que precisa é prevenção. Deve-se atuar responsavelmente em relação à sexualidade", define. 

Metodologia 

A Pesquisa Nacional de Aborto é o maior levantamento já feito sobre o assunto no Brasil. Antes, os dados eram imprecisos e coletados so­­mente quando as mulheres ti­­nham alguma complicação e procuravam hospitais públicos. Para conseguir chegar a um resultado fidedigno, o método usado aliou questionários respondidos a próprio punho pelas entrevistadas e depositados em uma urna a questionários aplicados com entrevistadores com indagações sociais e demográficas. "Só conseguimos porque garantimos a elas o sigilo", explica Medeiros. No total, foram ouvidas 2.002 mulheres entre 18 e 39 anos, das capitais brasileiras e de municípios acima de 5 mil habitantes, respeitando a composição social e demográfica da população. 


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