Publicado em: 15/08/2010
Legislação atual não é suficiente para evitar agressões contra crianças. Lei da Palmada quer reforçar a punição a agressores
Negligência e violência física e psicológica são os bichos-papões que mais atormentam crianças e adolescentes dentro de casa e lideram o ranking de violações dos direitos infanto-juvenis no Paraná, segundo dados do Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes – Disque 100. Juntos, esses maus-tratos representaram 1.113 denúncias em todo estado em 2009. E só no primeiro semestre deste ano já foram registradas 369 ocorrências do tipo. No entanto, a escalada das agressões não acompanha a da punição. Brechas na lei e dificuldades de se obter provas fazem com que os agressores fiquem impunes.
A pena para o crime de maus-tratos está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no artigo 136 do Código Penal. Contudo, a existência da lei não é suficiente para coibir as agressões e trazer garantias às crianças e adolescentes.
O advogado e presidente da Fundação Criança de São Bernardo do Campo (SP), Ariel de Castro Alves, diz que o assunto maus-tratos é complexo pela dificuldade de configurar o crime. "É necessário provar a exposição da criança à situação de perigo de vida ou de saúde e muitas vezes é difícil de se obter provas materiais, documentais ou testemunhais", explica.
Outro ponto que dificulta a punição é quanto às divergências na interpretação do conceito de maus-tratos. Há quem entenda que a violação precisa ocorrer habitualmente, outros alegam que basta uma só vez. A subnotificação, ou seja, a falta da queixa em Conselhos Tutelares também contribuiu para o quadro de impunidade.
Quando ocorre, a punição geralmente é leve e os condenados acabam submetidos a penas alternativas em juizados especiais, com multas ou entregas de cestas básicas, segundo Alves. Se considerado de menor poder ofensivo, o crime de maus-tratos tem pena de até dois anos. Mas em casos de lesão corporal e morte, a pena sobe de 4 até 12 anos.
Mesmo quando se trata de lesão corporal, cuja prova pode ser obtida por meio de exame de corpo delito, também é raro haver punições. "Isso porque a palavra da criança é muitas vezes desacreditada pelas autoridades. Muitos agressores justificam que ela caiu da cama, escorregou, tropeçou. E as testemunhas – outros irmãos, pai ou parentes –, geralmente são pessoas submissas ao agressor porque a maioria dos casos ocorre em ambiente doméstico."
A legislação atual deve ganhar um reforço no cerco aos agressores – a maior parte das vezes, pais, padrastos, avós, tios e conhecidos da vítima – com o projeto de lei que proíbe beliscões, palmadas e outros castigos físicos a crianças, proposto pelo governo federal e em tramitação no Congresso. A Lei da Palmada quer coibir castigos físicos impostos às crianças pelos pais, sob pena de encaminhá-los para acompanhamento psicológico.
O presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Fábio Feitosa da Silva – que defende a proposta e questiona a utilização do termo palmada para denominar o projeto de lei –, explica que o artigo 18 do ECA já trata da questão dos maus-tratos. No entanto, não diz de fato o que caracteriza a atitude de violência. "A lei vem justamente para fortalecer o que o ECA já traz", diz.
O projeto de lei do governo ainda pode passar por algumas alterações. Um dos gargalos será fazer a fiscalização para coibir os abusos dentro de casa. A saída seria a capacitação de conselheiros tutelares, prevista a partir de uma parceria entre o Conanda e universidades, com apoio de outros órgãos. Para o Feitosa, essa seria uma forma de fazer com que as denúncias de maus-tratos cheguem às autoridades. A outra é a própria divulgação da proposta e o debate em torno do conceito de como educar na sociedade atual. "No século 19 tínhamos o uso da palmatória na escola. Quando acabou, os professores questionaram como iriam educar. Se educa pela palmatória ou pelo diálogo?", reflete.
O presidente do Conanda defende a intervenção do Estado dentro de casa quando o assunto é violência. "É papel do Estado fazer intervenção quando há abusos. Por isso foi criada a Lei Maria da Penha", explica.
Agressão tira razão dos pais
Os autores da agressão contra as crianças podem estar bem mais próximos delas do que se imagina. São pais, padrastos, tios, avós que às vezes acabam se excedendo na tentativa de corrigir algum comportamento, diz o promotor do Ministério Público do Paraná, Wilson José Galheira. "Os pais com a intenção de educar acabam se excedendo nos meios de correção e agridem fisicamente os filhos, dando alguma surra. Posteriormente se arrependem, mas o crime já está feito", diz.
As denúncias podem ser feitas nos Conselhos Tutelares ou no Disque 100, um número nacional que recebe denúncias de violação de direitos de crianças e adolescentes e pode ser acionado de todas as partes do Brasil. Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CRAS), hospitais e clínicas da rede pública também devem oferecer tratamento médico, psicológico e psiquiátrico as vítimas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 13, prevê que os casos devem ser encaminhados aos conselhos tutelares e ainda estabelece multa para profissionais ou responsáveis que não fazem a denúncia, caso tenham conhecimento.
No Paraná, os conselhos tutelares de Curitiba e Foz do Iguaçu encaminham notificações ao Núcleo de Proteção a Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes (Nucria). Por enquanto apenas as duas cidades contam com núcleos desse tipo.
Mas há também denúncias que partem de professores, diretores de escolas, enfermeiros e médicos de postos de saúde e até dos próprios pais, quando são separados.
Em Foz do Iguaçu a maioria dos indiciados no Nucria foi condenada. Na cidade, a maior parte dos maus-tratos está relacionada a agressões físicas e psicológicas, mas também há casos de negligência relacionados a cuidados com a saúde, higiene e abandono intelectual das crianças que precisam de uma intervenção nos pais para serem evitados. "Os pais também precisam de acompanhamento", diz o Conselheiro Marcio Rosa da Silva.