CRACK – No meio do caminho tem muitas pedras

Publicado em:  13/10/2010

O início de 2010 foi marcado por intensas chuvas que atingiram o Sul e o Sudeste do Brasil ocasionando centenas de mortes e prejuízo aos cofres públicos superior a R$ 1 bilhão. Tudo explicado pela inclemência da natureza ou pelos desígnios de Deus. Esse é um exemplo semelhante ao que ocorre em qualquer outra região a qualquer época do ano.

 

Tais acontecimentos não são novidades e nem tão imprevisíveis. Basta procurarmos os registros de notícias nas últimas décadas e constataremos a repetição dessas tragédias anunciadas. Mais do que a natureza, o descaso, a irresponsabilidade e a incompetência dos múltiplos governos municipais, estaduais e federal que se sucedem, são os principais responsáveis por essas situações.

 

Em 1996 foi publicado pela editora Ática o livro "Crack – o caminho das pedras" do jornalista Marco Antonio Uchoa. Nele já são descritos, com início em 1988, todos os problemas que a chegada do crack começava a desencadear em São Paulo e Rio de Janeiro. Eram relatos de pessoas pobres e humildes, que como ovos de serpentes, mostravam a força avassaladora com que essa droga atingia suas vidas, prenunciando os graves problemas sociais que daí resultariam.

 

Desde 2008/09 a mídia brasileira, em particular a do Rio de Janeiro, sensibilizada com os casos de dependentes  de crack oriundas das classes média e alta que começaram a ser percebidos, passou a dar grande destaque a esse "novo" fenômeno urbano, responsável por tantos problemas.

 

Para quem trabalha com as dependências químicas a denominada epidemia do crack não é um fato novo, não nos pegou de surpresa, como dizem os políticos. Há muito estamos alertando as "autoridades constituídas" para a desassistência aos pacientes psiquiátricos e aos dependentes químicos em particular. Reclamamos a total inexistência de políticas efetivas de prevenção ao uso de drogas (que não se resumem a fazer cartilhas e palestras bem intencionadas). Clamamos pelo controle da propaganda das bebidas alcoólicas, cervejas em especial.

 

Mas o que recebemos é o massacre psicológico e emocional diário de nossos "guerreiros e heróis" defendendo a honra da Pátria, encharcados pelos comerciais da cerveja patrocinadora da seleção na África do Sul. Encerrada a Copa, novos comerciais serão produzidos e veiculados.

 

Enquanto isso, pela proximidade das eleições e enorme apreço que os políticos possuem pela opinião pública, fomos brindados com a movimentação célere do Ministério da Saúde para enfrentar essa terrível calamidade acidental que nos persegue há décadas.

 

Aqui cabe uma ressalva. O que se propõe não é uma discussão eleitoral, uma polêmica entre presidenciáveis e seus asseclas, ávidos por garantir um esplêndido lugar à sombra no planalto central.

 

Esse debate seria pobre e raso. E o que é mais curioso, não haveria vencedores, pois o histórico e as evidências são amplamente desfavoráveis a todos os políticos e seus partidos. Se não, vejamos - para deixar as opiniões bem claras e distintas.

 

De 1988 para cá – estiveram na presidência da República representantes do PMDB, PRN, PSDB e PT. Se investigarmos nos Estados e nas principais cidades – embora o crack esteja presente em todos os municípios do país – também constataremos que todos os partidos estiveram no poder aqui e ali, por tempo mais ou menos longo. No poder legislativo não seria diferente. Com as poucas honrosas exceções – como, por exemplo, a legislação restritiva ao consumo do tabaco, vossas excelências muito pouco fizeram de efetivo no vasto e complexo campo das drogas lícitas e ilícitas.

 

Esclarecendo que não se trata, aqui, de se criticar ou defender qualquer governo ou partido político, passo a comentar o chamado Plano Emergencial para o crack apresentado pelo Ministério da Saúde.

 

Tal plano segue a lógica reinante nas políticas para a psiquiatria. Lógica fundamentada em princípios ideológicos muito evidentes. Um deles é o furor anti-médicos e em especial anti-psiquiatras.

 

Como sabemos pelos inumeráveis exemplos da História antiga e contemporânea, ideologias podem cegar ou no mínimo estreitar a visão de seus crentes. Muitas vezes produzem monstros, que, se não lidassem com situações graves que envolvem a vida real de milhões de pessoas, estariam próximas da genialidade de Marx – (o Groucho, é claro).

 

O uso de crack e sua conseqüente dependência é um transtorno psiquiátrico. Para ser mais claro, é uma patologia grave que afeta o cérebro dos doentes, danificando neurônios, sinapses e todo o aparate neuroquímico do sistema nervos central. Por isso provoca as alterações emocionais, psicológicas e clínicas (acidentes vasculares cerebrais, lesões cardíacas, pulmoares, etc.). E o que mais tem chamado a atenção da população e das mídias é que produz fortes alterações comportamentais que resultam em violência, prostituição, exposição a situações de risco como prática de sexo desprotegido, tráfico de drogas e criminalidade.

 

Se levarmos em conta que parte significativa dos dependentes de crack são crianças e adolescentes podemos imaginar as conseqüências atuais e futuras desse fato.

 

O Ministério da Saúde  acredita que o crack é mais um fenômeno social, uma construção histórica. Por um lado é uma opinião respeitável, uma vez que a AIDS, a tuberculose, as neoplasias e todas as outras enfermidades, são fruto de múltiplos fatores sociais, históricos, econômicos, etc.. Mas para enfrentá-los, além das campanhas preventivas e educacionais para esclarecer a população e diminuir os estigmas e preconceitos, é necessário uma ampla e cientificamente bem fundamentada assistência médica, que ofereça diagnóstico e tratamento, inclusive medicamentoso. Só assim, é possível, por exemplo, que hoje tenhamos pacientes portadores de HIV levando uma vida plena. Se não fosse o atendimento médico e o uso correto da medicação ainda estaríamos só distribuindo camisinhas e trocando seringas para esses pacientes, enquanto a morte os levaria rapidamente.

 

 Ou seja, além de reconhecer e enfrentar o substrato social, cultural e histórico das doenças é imprescindível estudar, compreender e criar meios de enfrentar a dimensão biológica das enfermidades, para poder tratá-las de modo correto e positivo.

 

Foge ao escopo desse artigo discutir as medidas sociais e políticas para se combater o crack, não porque elas não sejam importantes, mas por falta de espaço. Por isso, vamos nos centrar na dimensão médica.

 

O paciente dependente do crack é portador de uma doença psiquiátrica grave, necessita e merece um tratamento especializado. Todas as outras medidas sociais, jurídicas e políticas, são importantes para a prevenção e posterior reintegração social desses doentes. Mas isso não valida a opinião ingênua defendida pelo Ministério da Saúde, de que o problema desses doentes é a vulnerabilidade social e não o crack e sua dependência. Mesmo que fosse, não se resolve vulnerabilidade social com Caps ou mantendo os doentes nas ruas.

 

Ao negar a patologia psiquiátrica o MS insiste em querer oferecer leitos em hospitais gerais para atendimento desses doentes. Aqui fica evidente a posição anti-psiquiátrica e que a rigor, penaliza os doentes e suas famílias.

 

Os hospitais gerais em sua grande maioria, não dispõe de psiquiatras e muito menos de psiquiatras especializados em dependência química para o atendimento clínico e emergencial. Também não dispõe de estrutura física e nem de enfermagem e corpo técnico treinado para esse tipo de atendimento.

 

Segundo: todos sabemos como é quase impossível obter uma vaga em hospital geral para atendimento de alcoolistas. Para dependentes de crack seria mais fácil?

Só quem nunca atendeu um paciente usuário de crack pode apresentar tal proposta e brincar com recursos públicos que são tão escassos para a saúde, haja vista o sub-financiamento do SUS.

 

Tal proposta é tão absurda de um ponto de vista médico quanto se fosse proposto tratar paciente com infarto do miocárdio em enfermaria clínica e não em UTI, por considerar esses ambientes agressivos, excessivamente tecnificados e que mão valorizar o lado humano do doente, que seria agredido em sua subjetividade, livre arbítrio e dignidade ao ficar conectado a aparelhos, tubos e fios.

 

Cada patologia demanda o ambiente, os medicamentos e os especialistas que o atual  estágio do conhecimento científico propõe e dispõe. O paciente em condições clínicas graves necessita e merece o acesso a uma UTI. O dependente químico merece a melhor assistência psiquiátrica possível, que não é suprida nem pelo hospital geral e nem só pelos Caps, como a ilusão obsessiva do MS quer impor, negando a realidade clínica, das ruas e da vida.

 

 

A meu ver a principal  falha  no plano do MS é essa negação ideológica da dimensão  biológica da dependência química. Isso leva a atribuir o uso de drogas a fatores sociais, culturais e antropológicos, fundamentando-se em uma romantização nostálgica do uso de drogas há muito superada pelas neurociências. Não há nada de transgressor ou criativo em se utilizar drogas. Também não há utilização do livre arbítrio nesse uso. Pelo contrário, o cérebro de um dependente é danificado e modificado de tal modo que a pessoa deixa de ter escolhas, só restando a busca da substância como objetivo e sentido da vida. O tratamento deve ter como alvo oferecer a eles a possibilidade de recuperar as outras dimensões da vida que se perderam, ampliar horizontes e não oferecer condições para que se mantenha a vida unidimensional e opressora das drogas. Propor apenas a redução de danos é ofertar-lhes a adaptação ao inferno, o conformismo com uma condição sub-humana.

 

Em outras palavras, os doentes que perambulam como zumbis pelas cracolândias e as pessoas que buscam desesperadamente local de atendimento para seus familiares, para não acorrentá-los em casa, ao invés da defesa abstrata da subjetividade que já se esgotou e da defesa teórica de uma suposta clínica do sujeito merecem receber concretamente o melhor tratamento psiquiátrico, baseado em conhecimento científico e experiência clínica, no que poderíamos chamar de uma clínica para o cidadão concreto em oposição à clínica do sujeito virtual, prisioneiro da subjetividade vazia, fruto da obsessão ideológica ou de um cérebro danificado.

 

 

Marco Antonio Bessa

 

Doutor em Ciências, UNIFESP

 

Mestre em Filosofia, UFSCar

 

Presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria

 

Secretário do Departamento de Dependência Química da ABP

 

Conselheiro do Programa de Educação Continuada da ABP

 

 

 

 


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