Clínica antidroga é acusada de torturar pacientes em SP

Publicado em:  19/12/2010

Prefeitura contratou local para atender a dependentes de crack e cocaína

"Mãe, me tira daqui... estou sendo espancado, estou todo machucado", foi o pedido de ajuda de um paciente da New Life

LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO

Espancamentos, cárcere privado, castigos, fome, choques elétricos. Esse foi o tratamento que 59 dependentes químicos dizem ter recebido após procurar a Prefeitura de São Paulo em busca de ajuda para se livrar das drogas.
As agressões teriam ocorrido na New Life, no município de Embu-Guaçu, região metropolitana. Trata-se de uma clínica contratada sem licitação pela prefeitura paulistana para "prestação de assistência a portadores de dependência de substâncias psicoativas, que necessitem de cuidados de reabilitação em regime de internação".
Pelo serviço, a Secretaria Municipal da Saúde pagaria R$ 1.450.800 ao ano.
"Foi a pior cena que já presenciei na minha vida: meu filho estava dopado, não conseguia nem abrir os olhos, babava, e me dizia: "Mãe, me tira daqui... Eu estou sendo espancado, estou todo machucado"."
Assim a mãe de B., 20, descreveu a situação do filho, que estava internado na New Life havia apenas dez dias.
A Folha teve acesso às denúncias feitas pelos pacientes e seus familiares, endereçadas ao Ministério Público, à Secretaria Estadual da Saúde, à Prefeitura de São Paulo e ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Também recebeu cópia dos boletins de ocorrência com denúncias de maus-tratos na New Life.

PORTAS FECHADAS
Em 25 de novembro, após receber as denúncias, a Secretaria Municipal de Saúde rompeu o contrato com a clínica. As vigilâncias sanitárias estadual e municipal de Embu-Guaçu interditaram por "completa inadequação" as unidades 2 e 3 da clínica.
Parte dos pacientes foi para outras clínicas conveniadas. Parte optou por tratamento sem internação.
Os denunciantes foram levados pela Prefeitura de São Paulo à New Life. Estavam em desespero com o uso de drogas, a maioria já dependente de crack. Em seu site, a clínica alardeia que Rafael Ilha, o ex-cantor do grup o Polegar, foi um de seus pacientes. "Achei que era minha chance. O lugar era bonito, tinha piscina", afirmou P.
O local, entretanto, seria apenas um breve estágio. Assim que a ambulância da prefeitura ou os parentes iam embora, a clínica providenciava a remoção dos pacientes para sua sede 2, localizada a poucas quadras dali.
"Tinha grades por todos os lados, tudo fechado, oito pessoas por quarto de 6,5 metros quadrados", disse A.
"O dono da clínica só pensava no dinheiro. A comida era arroz com cenoura. E só. Depois de muito reclamarmos, colocaram também carne podre no almoço. O cheiro era terrível, mas comíamos assim mesmo porque a fome era desesperadora", disse P.
Os pacientes relataram tentativas de fuga encerradas na base da "sarrafoterapia" ou "madeiroterapia", aplicadas pelos seguranças da clínica -"O Marcelo [proprietário da New Life] dizia que esses eram os tratamentos que vermes como nós mereciam", contou E.
Os pacientes rel ataram também o uso frequente de uma arma não letal para aplicação de choques elétricos nos internos "rebeldes".

SOLITÁRIA
S. disse que foi dopado com um coquetel de Fenergan, Haldol e Diazepan, também ministrado a outros pacientes. "Eles dopavam a gente quando suspeitavam de alguma tentativa de fuga. Então, jogavam a gente no compulsório [havia duas dessas celas fechadas na unidade 2 e estava em construção uma terceira]."
Segundo os pacientes, as agressões eram facilitadas pelo fato de os parentes serem mantidos afastados, o que é um procedimento até comum nesse tipo de clínica. "Mas, na New Life, eles diziam que nós devíamos obedecer, porque as nossas famílias não queriam mais saber de nós", relatou A.
"Como é possível que pessoas em busca de tratamento para sua doença tenham sido enviadas pela prefeitura para um verdadeiro local de tortura como esse?", questionou Lucio França, do Conselho Estadual de Defes a dos Direitos da Pessoa Humana.

 

"Denúncias não devem ser levadas a sério", diz proprietário de clínica

Ele nega ter havido maus-tratos; Prefeitura de São Paulo afirma ter tomado as providências após saber de acusações

DE SÃO PAULO

Marcelo Miceli de Oliveira, proprietário da Clínica New Life, diz que "denúncias de pacientes involuntários não devem ser levadas a sério". "Eles não aceitam o tratamento e tentam sabotar qualquer iniciativa que os leve para longe das drogas", diz.
Perguntado sobre a interdição das unidades 2 e 3 da clínica, Oliveira afirmou que a pergunta deveria ser endereçada à Vigilância Sanitária.
Sobre a ruptura do contrato pela prefeitura, diz ser "difícil trabalhar com esse tipo de paciente". "Eles não conseguem aderir ao tratamento e as famílias não entendem a necessidades terapêuticas."
Ele negou que tenha havido maus-tratos na New Life.
A Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, por sua vez, disse por intermédio de nota oficial que "tão logo recebeu denúncia de familiares sobre as condições do tratamento prestado aos pacientes da Clínica Terapêutica New Life, na tarde de 25/ 11, tomou todas as providênc ias para a apuração das informações relatadas e para a transferência dos 59 pacientes que tinham sido encaminhados pelo município para tratamento na New Life".
Segundo a prefeitura, "isso significa, portanto, que não há mais nenhum paciente sob a responsabilidade da Secretaria Municipal da Saúde na referida clínica".
A pasta diz que "todas as clínicas conveniadas seguem rigoroso cronograma de vistorias e monitoramento, a fim de garantir (...) qualidade no tratamento" e que a New Life "foi visitada antes do início da vigência do contrato", mas que as irregularidades foram constatadas somente "em nova vistoria após as denúncias". Segundo a prefeitura, o contrato vigorou por dois meses. No período, desembolsou R$ 120 mil.

Unidade ainda aberta mistura criança e adulto

DE SÃO PAULO

Dois pacientes tão dopados que não conseguiam nem sequer dizer seus nomes, ou levantar de suas camas. Um menino de 11 anos denunciando ter passado 48 horas trancafiado em um local fechado, o chamado "compulsório" ou "tranca".
Crianças partilhando o mesmo espaço físico de dependentes de drogas adultos.
Estas são algumas o bservações feitas por uma delegação do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) em visita à unidade 1 -a única que permanece aberta- da Clínica New Life, na quarta-feira passada. A Folha acompanhou parte da visita.
A unidade 1 era o local onde as ambulâncias da prefeitura deixavam os dependentes. Logo depois, eles eram removidos para a unidade 2.
A unidade 1 tem piscina, área verde, refeitório, além dos dormitórios.
Os conselheiros do Condepe chegaram ao local às 16h. Não encontraram médicos e nem responsável por atividades psicoterapêuticas -segundo o proprietário (que se define como comerciante), esses profissionais já tinham estado no local naquele dia.
O garoto de 11 anos andando entre os adultos, soube-se, está internado no local por dependência em crack. Ele relatou ao advogado Rildo Marques de Oliveira, do Condepe, já ter passagens pela Fundação Casa.
Esse menino afirmou que a cabara de ser solto do "compulsório". Outros pacientes confirmaram a história.
Os representantes do Condepe que vistoriaram a unidade dizem ter visto o "compulsório", área trancada com cadeados, instalado bem ao lado da enfermaria.
A visita estendeu-se até a unidade 2 da New Life, a poucas quadras da matriz, onde teriam acontecido os espancamentos e maus-tratos aos dependentes enviados pela prefeitura paulistana. Desta vez, o proprietário não permitiu a entrada dos conselheiros do Condepe.

 


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