19 mil leitos psiquiátricos a menos

Publicado em:  06/04/2011

 

Fotos/Henry Milleo/Gazeta do Povo / Paciente que vive no Lar Odilon Mendes, em Ponta Grossa: Lei da Reforma Psiquiátrica completa hoje dez anos Paciente que vive no Lar Odilon Mendes, em Ponta Grossa: Lei da Reforma Psiquiátrica completa hoje dez anos

Tratamento

19 mil leitos psiquiátricos a menos

Queda aconteceu na última década. Apesar da criação de centros terapêuticos, internamento de doentes ficou comprometido

No dia em que a Lei da Reforma Psiquiátrica completa uma década, um balanço do serviço psiquiátrico oferecido no país mostra que, enquanto 1.329 novos centros terapêuticos foram criados para atender pacientes com problemas mentais em todo o Brasil, 19 mil leitos de hospital para a internação de doentes foram extintos. Com isso, o internamento – que não acontece nos centros de atenção psicossocial (Caps) – fica comprometido devido à redução da oferta de leitos distribuídos pela rede pública.

Nos últimos 10 anos, o Brasil não atendeu a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de ter um leito psiquiátrico para cada grupo de mil pessoas. O país precisaria abrir mais 154 mil leitos – e o Paraná pelo menos mais 7,1 mil – para atingir a meta da OMS. Hoje, são 36.106 vagas para internação existentes no país. “Tem pacientes que não podem ser tratados na rede substitutiva [formada pelos Caps e outros serviços] e ainda precisam de leitos”, lembra o diretor de psiquiatria da Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Paraná (Fehospar), Osmar Ratzke.

A internação deixou de ser a única via do atendimento ao paciente psiquiátrico para ser uma alternativa em casos de surto. O serviço costuma ser ofertado principalmente em hospitais especializados em psiquiatria. Apenas 9% dos leitos psiquiátricos do país (e 6,7% do Paraná) são ofertados em hospitais gerais. Uma portaria do Ministério da Saúde exige somente dos hospitais públicos a reserva de 10% das vagas totais para leitos de psiquiatria.

 

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Há sete anos, Ricardo de Lima não recebe a visita de familiares em abrigo de Ponta Grossa: exemplo de abandono

Entrevista

Paulo Delgado, ex-deputado federal, autor da Lei 10.216, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica.

A lei levou 12 anos para ser aprovada após mudanças na proposta original. Na prática, ela saiu a contento?

A demora da aprovação ajudou à compreensão da lei pela sociedade. Não havia possibilidades de conciliar a Constituição de 1988 e os direitos dos cidadãos com a prisão perpétua dos doentes mentais. A psiquiatria tradicional ainda resiste ao tratamento em liberdade. Talvez aí o projeto original fosse mais incisivo com a formação dos médicos, os obrigando a serem desmanicomiais (sic), interdisciplinares, terapêuticos e preventivos. E menos dependentes da rua de mão única que é a intoxicação por remédios que ainda predomina.Também os recursos financeiros ficaram aquém do que pensei na época.

O tema desospitalização ainda é muito controverso. Acredita que o atendimento ao doente mental melhorou hoje em dia?

É claro que muitos psiquiatras são contra a reforma. A medicina brasileira é carceral (sic) e as faculdades de Medicina só ensinam sedação, isolamento e cirurgia. Felizmente, a lei acabou de vez com a lobotomia. A lei não é contra a internação de quem precisa, mas, no caso de se ficar internado por muito tempo, é a Medicina que é um fracasso, não o doente.

Acredita em uma futura flexibilização da Lei da Reforma Psiquiátrica?

Há pressão para retroceder, mas confio no Ministério da Saúde, nos psiquiatras modernos, nos psicólogos, psicanalistas, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas e familiares. Se cada vez mais se desconfia da internação hospitalar e do excesso de remédios em todas as especialidades médicas, por que não confiar na prevenção e no humanismo que o tratamento ambulatorial e domiciliar apregoam com sucesso? Água com açúcar dada com amor faz mais efeito do que remédio dado com indiferença.

Investimento

Saúde mental recebe só 2,9% de Ministério

A Reforma Psiquiátrica trouxe uma inversão de investimentos na área da saúde mental: o governo federal passou a gastar mais com atividades extra-hospitalares do que propriamente com internações. Antes da nova lei, conforme dados da Associação Brasileira de Psiquiatria, o investimento na área ficava na casa dos 6% – a fatia caiu para 2,9% com a nova política.

Embora a Lei 10.216 tenha sido aprovada em 2001, os gastos com o atendimento a doentes mentais foram invertidos somente cinco anos depois – ações e programas extra-hospitalares ganharam R$ 541,9 milhões, enquanto o atendimento hospitalar recebeu recursos na ordem de R$ 427,3 milhões em 2006. Para 2011, dos R$ 77,1 bilhões previstos no orçamento do Ministério da Saúde, 2,93% serão destinados ao departamento de saúde mental. A previsão é de que somente um terço seja repassado aos hospitais psiquiátricos.

Isso revela, conforme a diretora do Hospital Psiquiátrico de Maringá, Maria Emília Parisotto de Mendonça, uma “situação emergencial” para os hospitais. Ela cita o “valor irrisório” pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ao setor: um leito psiquiátrico num hospital de médio porte recebe uma diária de R$ 42,37 – o ideal seria o valor de R$ 112. “Nesse valor está incluída a hospedagem, com roupa lavada e passada, alimentação, medicação e assistência médica”, completa.

Diante do desequilíbrio financeiro, Maria Emília opina que os estados devem suplementar os recursos. Desde 2007, a Secretaria de Estado da Saúde do Paraná mantém 100 leitos em hospitais psiquiátricos. O diretor de psiquiatria da Federação dos Hospitais do Paraná (Fehospar), Osmar Ratzke, acrescenta que alguns municípios, como Curitiba, também fazem essa suplementação.

Para o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, a internação ainda é necessária porque não há um atendimento de qualidade em rede. “Nós deveríamos ter um sistema de atendimento em rede que primasse pela promoção da saúde. Se houvesse um atendimento primário e secundário adequado você reduziria a possibilidade de internação”, aponta.

Participação da família

Dentro da proposta da Reforma Psiquiátrica, o número de Caps no Brasil passou de 295 em 2001 para 1.624 neste ano. Neles, o doente mental tem o acompanhamento médico, participa de oficinas terapêuticas e retorna para o convívio familiar e social, sem ficar internado. O papel da família no tratamento do doente mental foi retomado. “O transtorno mental não se configura como algo apenas da esfera biológica, outros aspectos do viver constituem-se fundamentais para o tratamento. A família é um dos vértices deste tratamento”, analisa a psicóloga do Caps do município de Castro Luci­mar Garcia Coneglian. Segundo ela, que é mes­­tre em Ciências Sociais, a Reforma Psiquiátrica brasileira tem base no movimento italiano de Franco Basaglia, “que focaliza o olhar sobre o transtorno mental através da ótica do social, dos direitos humanos, da cidadania”.

Abandono

No entanto, o fechamento de hospitais psiquiátricos, que sucumbiram à lei, revelou a realidade do abandono familiar. Dois estudos da área da psiquiatria sugerem que muitos egressos desses hospitais morreram ou foram parar no sistema penitenciário. O pesquisador Fer­nando Portela Câmara, da ABP do Rio de Janeiro, verificou que entre 1996 e 2005, segundo da­­dos do próprio Ministério da Saúde, a mortalidade de doentes mentais aumentou 62,3%.

Outro estudo, feito há quatro anos pelo pesquisador José Taborda, da Universidade Federal de Ciências da Saúde (RS), em cadeias paulistas, mostrou que 12,2% dos detentos tinham problemas mentais graves. “O dado é cru e não mostra se os detentos adquiriram a doença na prisão ou se foram levados para lá pela falta de atendimento nos hospitais, mas é provável que sejam as duas causas”, comenta Taborda.

Ricardo de Lima, 53 anos, egresso do hospital psiquiátrico Franco da Rocha, em Ponta Grossa, fechado em 2004, é um exemplo do abandono familiar. Aos 15 anos de idade, ele foi levado ao hospital com o diagnóstico de retardo mental grave. De lá só saiu com o seu fechamento. Foi encaminhado para o Lar Odilon Mendes e há sete anos não recebe a visita de nenhum familiar. Ele não é acompanhado por nenhum Caps e recebe apenas a medicação fornecida pelo abrigo.

Discussão da reforma começou na década de 70

Embora exista oficialmente há 10 anos, a Reforma Psi­­quiátrica começou a se desenhar na década de 70. “Ela surgiu com um movimento grevista nos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, em protesto contra a situação precária do atendimento. A lei deu visibilidade e legalidade ao que já vinha ocorrendo”, explica o professor do departamento de Psicologia da Faculdade Es­­tadual Paulista (Unesp) Silvio Yasui.

O tema ganhou notoriedade com o livro Canto dos Malditos, que inspirou o filme Bicho de Sete Cabeças. O autor do livro, o curitibano Austregésilo Car­rano Bueno, que passou por vários hospícios depois de a família ter descoberto um cigarro de maconha em seu quarto, morreu em maio de 2008, com câncer no fígado.

Paciente

Outro representante da luta antimanicomial é o aposentado Geraldo Peixoto, pai de André, que era portador de esquizofrenia e morreu no ano passado de infarto. André foi paciente do primeiro centro de atenção psicossocial (Caps) aberto em São Paulo, no final da década de 80. Peixoto o levou ao centro terapêutico depois de se angustiar ao ver o filho sedado num leito psiquiátrico do Hospital das Clínicas. Ele abandonou o emprego para se dedicar ao filho. “Foram mais de 20 anos, mudei tudo, é muito difícil você passar 24 horas com um parente com esquizofrenia, mas foi reconfortante”, comenta.

Atendimento

O usuário do Caps de Ponta Grossa, Luís Roberto Pellissarri, 39 anos, esquizofrênico e bipolar, já ficou internado e afirma gostar de fazer o tratamento no Caps, mas não deixa de lado a importância da internação. “No Brasil, a Reforma Psiquiátrica não foi boa, ela funcionaria só em país de primeiro mundo, porque a pessoa precisa ter um hospital bom para quando ela precisa”, opina.

Já a usuária do mesmo Caps, Sandra Aparecida dos Santos, 43 anos, que tem depressão, acredita que ganhou mais autoconfiança no tratamento atual em relação ao período em que ficou internada. “O hospital é um lu­­gar que me dava medo, sentia calafrios; aqui não, aqui é muito melhor”, resume.


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