O país das contas de menos

Publicado em:  05/06/2011

Priscila Forone/Gazeta do Povo

Priscila Forone/Gazeta do Povo / O mexicano Juan García e norte americana Laura Beavers em Curitiba: mais ou menos diferentesO mexicano Juan García e norte americana Laura Beavers em Curitiba: mais ou menos diferentes

 

Uma das únicas ideias que a norte-americana Laura Beavers, mestre em Administração Pública pela Universidade de Nova York, tinha do Brasil era a figura de seu avô, natural no Rio de Janeiro. Com ele, aprendeu até a se virar na dificílima língua portuguesa, usando de uma blague. “Falo português, claro: um pouco”, e desata a rir diante de seu truque matreiro para conquistar a audiência.

No último mês, no entanto, o país de seu antepassado deixou de ser uma fantasia juvenil. Laura é a mulher à frente da Fundação Annie Casey, centro de pesquisa que há 22 anos alimenta os EUA de dados sobre a infância e a adolescência. A instituição usa de metodologia simples, mas inflamável: cruza dados oficiais, colocando lado a lado população, escolaridade, saneamento e violência. O saldo é o mais contundente dos raciocínios: o de causa e efeito.

Há dois anos, a metodologia Casey foi emprestada a um pool de ONGs e instituições brasileiras voltadas para o setor. Laura leu o resultado salpicado de siglas “estranhas” como IBGE, Pnad e TRE. E não achou graça. Na semana passada, ela esteve em Curitiba para o seminário nacional de discussão do Databook – como ficou sendo chamado o documento – e elogiou a profusão de dados disponíveis sobre a gente que vai de zero a 17 anos, a mais vulnerável. Mas não se furtou de manifestar seu espanto diante das pornográficas diferenças entre Nordeste e Sudeste. Declarou que gostaria de pesquisar se houve impacto do crescimento econômico na vida da infância deserdada. E se esforçou para falar a língua dos donos do capital, lembrando que cada dólar investido na infância rende US$ 8 no futuro.

Não é difícil entender o espanto da visitante – inclusive ao ser informada da insensibilidade do empresariado. O Databook tem a força de um ciclone tropical e deve deixar muitos gestores falando só “um pouco”. O estudo anuncia es­­cândalos, por exemplo, ao mostrar que existem 17 mil crianças de 6 a 10 anos matriculadas em programas de educação de jovens e adultos, o EJA. E que quase 40% das 86 mil escolas rurais não têm banheiro, remetendo ao tempo em que se fazia necessidades ao sabor da natureza.

O objetivo do Databook é fornecer subsídios para políticas públicas. As informações cruzadas, contudo, provocam um efeito involuntário. Ao pensar no problema seriíssimo da evasão escolar – que pode chegar a 22% ao ano em estados como Rio Grande do Norte, Piauí e Pará – não é comum atinar se o fracasso estudantil é maior nos colégios largados ao deus-dará. É.

Ao permitir essas associações, o estudo acaba por retratar a indigência a que estão sujeitos os brasileiros mais jovens e mais pobres. O misto de curiosidades e informação profunda, inclusive, fez um bem danado a países como o México, onde o método Casey já provocou pequenas rebeliões.

O psicólogo Juan Martín Pérez García, 41 anos, da Rede por Direitos da Infância, a Redin, lembra que graças à associação entre índices governamentais e informações dos movimentos sociais foi possível colocar o governo Felipe Calderón na prensa e chamar a atenção da ONU para sua inoperância.

Dos 35,6 mil homicídios registrados no México em 2010, cerca de 1,2 mil eram de crianças e adolescentes. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Com a diferença de que lá se precisou a soma de infantes cooptados pelo tráfico, os mandados para o exército antes da hora, os mortos em conflito armado com a polícia. “Essa é a realidade de um país em que 70% dos pais não deixam seus filhos saírem à rua, por medo”, explica Juan. “Com os dados criamos impacto. A divulgação é um ato político.”

Sobre nós

Os agentes internacionais dos direitos da infância Laura Beavers e Juan Martín Pérez García acharam Curitiba uma bela cidade, claro. Mas tiveram reações diferentes ao saber que na próspera capital do estado e região se registram até 25 homicídios por fim de semana, a maioria de jovens.

“Venho do México. Nada me espanta”, diz Juan. “Vivo em Baltimore, a segunda maior taxa de assassinatos dos EUA. Uma das piores”, pondera Laura, não sem antes revelar uma particularidade. Por cultura, os americanos veem as histórias de criminalidade como casos isolados, tragédias pessoais, e têm dificuldade de fazer relações entre família, pobreza, baixa instrução e criminalidade.

O México não chega a tanto – à moda dos novos rebeldes islâmicos, a rede social espalha informações e mantém os atritos em alta. Mas a tendência de criminalizar os adolescentes é uma chaga. Só falta, diz García, adotar lá a teoria da “ventana rota” [janela quebrada] aplicada no sistema de ensino de Nova York.

O princípio é esse: conserta-se cada parede pichada ou vidro estilhaçado, evitando a degradação, pois atrás dela viria o homicídio. Mas “alto lá”, lembra o mexicano, comunidades e famílias fazem um trabalho de formiguinha para que ninguém se perca. Tem de pôr na conta. As estatísticas começam a mudar pelas beiras. É uma das lições do Databook, o documento que, dizem, ensina a enxergar melhor.




Drops estatísticos

O grupo de organizações brasileiras que assumiu o Databook, como a Plan e a Rede Marista, prepara lançamento nacional da pesquisa. Confira alguns dados:

Jovens urbanos

O Brasil tem 57,2 milhões de crianças e adolescentes de zero a 17 anos, sendo que 80,9% vivem na zona urbana. A juventude rural, contudo, está mais exposta à falta de estrutura.

Os sem-registro

O estudo descobriu a existência de 160 mil crianças de até 1 ano de idade sem registro em cartório – o equivalente a 3,1% da população nessa faixa etária.

Os sem-creche

O Brasil tem 10,7 milhões de crianças de zero a 3 anos. Desses, apenas 7,16% frequentam creches. Dos 4 aos 6 anos – uma população de 8,7 milhões de pessoas – apenas 24% contam com pré-escola.

As escolas

O país tem mais escolas rurais do que urbanas: são 79 mil na cidade contra 86 mil no campo. Dentre as urbanas, 75,3% não têm estrutura para receber portadores de deficiência.

Os apreendidos

40.356 adolescentes brasileiros cumprem medida socioeducativa, metade deles no estado de São Paulo.

Os mortos

Em 2008, 10.212 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos morreram por causas externas. Os homicídios respondem por 40% dos casos, seguido dos acidentes de trânsito. O local que mais mata seus jovens é o Distrito Federal, com 80,6% dos casos de homicídio na faixa dos 15 aos 17 anos.


TAGS


<< Voltar