Publicado em: 06/08/2011
Segurança
Exposição, proximidade com o agressor e pouca proteção aumentam os riscos de violência. Pesquisa mostra quem são os mais vulneráveis
Boas políticas públicas de segurança não partem apenas do princípio de que é preciso perseguir o criminoso. Elas tentam também entender as vítimas. Essa linha de ação focada em quem sofreu uma violência surgiu na década de 60, nos Estados Unidos, e ajuda na compreensão dos fatores de risco ligados às ocorrências policiais. Com pesquisas domiciliares, é possível identificar quem está mais exposto à violência e fenômenos que muitas vezes ficam fora das estatísticas oficiais.
O pós-doutor em Ciência Política Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do programa de pesquisa em segurança e criminalidade do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da USP, elenca alguns fatores que nos tornam mais vulneráveis à violência: exposição, proximidade com o agressor, baixa capacidade de proteção, atrativos ante os olhos do agressor e natureza do delito.
A exposição se refere ao tempo que se frequentam locais públicos, estabelecendo contatos e interações sociais. O estilo de vida mostra em que intensidade os demais fatores estão presentes na nossa vida. Assim, determina em que medida nos expomos ao frequentar lugares públicos, qual nossa capacidade de proteção, nossos atrativos e a proximidade com os agressores.
Conforme estudo dos pesquisadores Cláudio Beato, Betânia Totino Peixoto e Mônica Viegas Andrade, essa proximidade diz respeito à frequência dos contatos sociais, o que depende do local de residência, condição socioeconômica, idade e sexo. A capacidade de proteção não está relacionada só ao poder econômico, mas também ao estilo de vida. Quem se resguarda, evitando contato com possíveis agressores, tem menos chances de ser vitimado. Nessa lógica, a pessoa que prefere igrejas a bares corre menos riscos de esbarrar com agressores, assim como quem anda de carro teoricamente tem mais proteção do que quem anda de ônibus.
A pesquisa de vitimização aponta, por exemplo, que pessoas mais velhas têm risco menor de sofrer agressão do que os mais jovens. De 35 a 44 anos, há 63% menos chances de sofrer agressão, e, acima de 45 anos a probabilidade é 79% menor do que entre jovens de 13 a 18 anos de idade. Os mais jovens se expõem por passar mais tempo fora de casa, muitas vezes consumindo álcool na vida noturna. O consumo de álcool, aliás, é um importante indicador de vitimização quando associado à permanência na rua. A bebida torna a pessoa mais vulnerável porque ela tende a ser passiva e desatenta.
Outra conclusão do estudo é que o trabalhador tem probabilidade 42% maior de ser agredido do que quem não trabalha. “Indivíduos que trabalham tendem não só a uma maior exposição, porque frequentam mais lugares públicos, como também a estar mais próximos dos agressores, pois circulam por uma maior malha social”, diz a pesquisa. A probabilidade de ser vitimado por agressão é 38% menor para pessoas que circulam mais durante o dia, uma vez que o estilo de vida de quem costuma andar à noite é mais vulnerável à ação de predadores.
Conclusões como essas, por mais simples que pareçam, podem levar a políticas públicas mais eficientes do que a simples repressão ao crime. O jovem, por exemplo, raramente vai a uma delegacia registrar a ocorrência, mas é o que mais se expõe a situações de risco. Não por acaso, programas de prevenção voltados à juventude têm um impacto amplo na segurança.
Dois traumas seguidos
Cilene Moraes, 35 anos, viveu duas experiências traumáticas em países diferentes e, à primeira vista, estaria enquadrada nos padrões comportamentais de vitimização, ou seja, teria uma parcela de responsabilidade. Ela, no entanto, não se sente culpada pelo assalto à mão armada sofrido em Curitiba nem pelo furto de sua bolsa em Buenos Aires. Márcia se diz vítima da marginalização excessiva que campeia as ruas das grandes cidades.
No ano passado Cilene foi com um casal de amigos à capital argentina. No quarto dia da viagem, notou um sujeito a segui-los pela Avenida Corrientes e pela Calle Florida, a Rua das Flores dos portenhos. Num dado momento ele passou rente e, dedo apontado para a bolsa, disse “peligro, peligro”. Cilene não entendeu o recado.
Por instinto, ela costumava pôr a bolsa no colo toda vez que saía para jantar. Numa noite, porém, os amigos recomendaram que relaxasse. Afinal, estavam em Buenos Aires. O que poderia acontecer? Cilene descansou a bolsa no braço da cadeira. Na saída, a surpresa. Foi-se a bolsa, com os documentos, os celulares e as máquinas fotográficas dos três.
“Foi o único momento de distração”, lamenta. Na Embaixada brasileira, foi orientada a registrar o furto na polícia. Na delegacia, os três amigos se depararam com muitos brasileiros na mesma situação. Entre eles, a dançarina de funk Ellen Cardoso, a Mulher Moranguinho, que teve a bolsa furtada numa loja de Buenos Aires. Cilene não conseguiu reaver a bolsa nem antecipar a volta ao Brasil.
Os três dias seguintes foram de raiva e resignação, a maior parte do tempo trancada no hotel. Sem dinheiro (talvez o ladrão nem tenha notado o fundo falso da bolsa recheado de notas), Cilene teve de recorrer a favores de outros brasileiros que conheceu na viagem. O trauma foi para ela ainda pior do que o assalto à mão armada no Boqueirão, em Curitiba, um ano antes.
Cilene voltava à noite do curso de pós-graduação quando foi abordada praticamente no portão de casa. Por ali sempre havia movimentação por causa do carrinho de cachorro-quente, dando certa tranquilidade. Naquela noite, porém, foi abordada quando atravessava a rua, segundos depois de um carro da Polícia Militar passar por eles. Ela sentiu na pele o frio do cano da arma.
Pelos padrões de vitimização, Cilene confiou demais na aparente segurança de Buenos Aires e vacilou ao não redobrar a atenção ao andar à noite em Curitiba. Teria, portanto, sua cota de culpa. Ela refuta. No caso curitibano, chegava à noite em casa e ainda tentou se esquivar ao ver um sujeito suspeito; no caso argentino, nem mesmo a operadora de turismo avisou sobre os riscos de assalto. Para ela, casos assim não acontecem por vacilo da vítima, mas pelo excesso de bandidos nas ruas.
Doze milhões são furtados ou roubados por ano
A cada ano, 12 milhões de brasileiros são vítimas de roubo ou furto. Sete de dez roubos ocorrem em vias públicas e metade dos furtos (quando não há violência) se dá em casa. Os objetos mais levados são telefone celular, dinheiro, cartão de crédito e cheque. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) se baseiam na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), no período entre setembro de 2008 e setembro de 2009.
Há 21 anos o IBGE investigou pela primeira vez o perfil das vítimas de violência, agora atualizado no suplemento Características da Vitimização e do Acesso à Justiça no Brasil. No período, subiu de 5,4% para 7,3% a taxa de brasileiros roubados ou furtados. A maioria das vítimas tem de 16 a 34 anos, do sexo masculino, com renda domiciliar per capita acima de cinco salários mínimos. Desses, 11,6% passaram por furto ou roubo.
A maior parte das vítimas residia na área urbana. Entre os homens, o porcentual de vítimas foi um quarto superior ao das mulheres. Os porcentuais foram similares para pessoas de cor branca, preta e parda.
Metade das vítimas de roubo procurou a polícia e 38% das furtadas fizeram o mesmo. Entre os motivos para as vítimas de roubo não terem procurado a polícia destacam-se “não acreditar na polícia” (36,4%) e “não ter considerado importante” (23,1%). Entre as vítimas de furto que não registraram a ocorrência, os principais motivos apontados foram “falta de provas” (26,7%) e “não considerarimportante” (24,4%).
Exposição a riscos
Três fatores são determinantes
Para um crime acontecer é preciso a convergência de três fatores: ofensor motivado para atacar, alvo disponível e ausência de guardiões para protegê-lo. Alvo pode ser tanto uma pessoa quanto um objeto. Já os guardiões não se referem apenas às organizações de segurança. Para estudiosos como os norte-americanos Ronald Clarke e Marcus Felson, as pessoas mais aptas a prevenir crimes não são os policiais, mas vizinhos, amigos, parentes, transeuntes ou o dono do objeto visado.
O sociólogo Leandro Piquet Carneiro lembra que a vítima pode apresentar diferentes condutas, como se expor de forma consciente a situações de risco (comprar drogas em área violenta), falhar na prevenção ao crime, envolver-se numa situação de risco, cooperar na realização do crime (um cliente furtado por uma prostituta) e encorajar um crime (organizar e planejar um conflito entre torcidas organizadas ou grupos políticos).