Publicado em: 23/10/2011
Não adianta fugir: sua vida ou a dos seus filhos pode, sim, estar em risco, e por dois motivos. Primeiro: você pode ter tomando "apenas" alguns golinhos de bebida alcoólica e achar que a quantidade não alterou seus reflexos em nada. Ledo engano. Segundo: você pode nem gostar de álcool, mas corre o risco de dividir uma via com alguém alcoolizado e acabar sendo vítima "por tabela", devido à transgressão alheia.
E foi justamente para evitar essa trágica realidade que a Lei 11.705 foi criada em junho daquele ano. Apelidada de Lei Seca, ela proíbe o consumo de bebida alcoólica por condutores de veículos - o limite é de 0,2 grama de álcool por litro de sangue. O transgressor fica sujeito à pena de multa, à suspensão da carteira de habilitação e até à detenção, dependendo da concentração de álcool por litro de sangue.
O fato é que o número de acidentes tem crescido não só em Sergipe. No cenário mundial, o Brasil ocupa o 5º lugar entre os recordistas em mortes no trânsito, atrás da Índia - o mais caótico do mundo -, China, Estados Unidos e Rússia. Sendo assim, não é nenhuma surpresa o questionamento sobre a eficácia da Lei Seca. Para o juiz substituto Ricardo Sant'Ana, do 6º Juizado Especial Cível de Acidente de Trânsito, no primeiro momento, com as medidas tomadas e a repercussão social da Lei Seca, ela foi cumprida, mudando, inclusive, o hábito da população. Mas ele concorda que, atualmente, isso não acontece mais.
"Não se percebe mais esse progresso. Os órgãos públicos executivos, que antes se empenhavam em dar visibilidade às suas ações de aplicação da nova lei, como na fiscalização do trânsito, hoje demonstram a atenuação de seu empenho", analisa Sant'Ana. Mas e a sociedade como fica?
INDIGNAÇÃO
Com a palavra, o funcionário público Marcelo Seixas, que perdeu seu filho caçula na madrugada da última quarta-feira, dia 12. Adivinhe como? Vítima de acidente automobilístico. Adivinhe onde? Na Rodovia Inácio Barbosa - ex-José Sarney -, local que há duas semanas ceifou outra vida, a da jovem Marcela Christinne Ferreira Santos, 19 anos, que teve a cabeça decepada com o impacto. Adivinhe o porquê? Provavelmente o motorista havia consumido álcool antes de dirigir.
Para Marcelo, pai do estudante de Direito Cristiano de Almeida Santana, de 21 anos, se houvesse fiscalização a vida de muitos jovens poderia ser poupada. "Meu filho morreu voltando de um show. Lá em Brasília, quando chega duas ou três horas da manhã, há polícia com bafômetros em todas as saídas de festas, abordando os jovens", exemplifica Seixas. Mas em Sergipe, a realidade é bem diferente - embora Brasília vá se convertendo em caos, deixando de ser exemplar.
E enquanto nada muda, resta a este pai, agora, a dor, o vazio do filho e da esposa, falecida há quatro anos, e apenas o outro filho, de 29 anos. "Pelo menos o policial que me ligou foi humano, mas meu filho já estava morto, debaixo do plástico", continua Seixas, agora, sem conter as lágrimas.
SELEÇÃO
O problema também está na momentaneidade. A sociedade extasia-se com a severidade dos acidentes apenas no momento do ocorrido. Mas sente-se distante. Sabe aquela coisa do "não foi comigo"? Quando não se sente na pele, logo se esquece. E o que é pior: os jovens não tomam a tragédia como exemplo, e tudo permanece como está: ninguém respeita a lei. Todo mundo bebe e dirige, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.
Para Rita Luz, psicóloga e da equipe Coordenação de Educação para o Trânsito da Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito - SMTT -, Aracaju e seus jovens estão sem limite e, por isso, a nova visão da educação para o trânsito é educar com noções de cidadania. "Participamos de reuniões nas escolas e estamos juntos com a igreja também. Hoje, para se ter uma ideia, ao avistar um cone, o motorista reduz a velocidade para não arranhar o carro, mas se coloca uma pessoa na faixa de pedestre, ele avança", exemplifica. O que caracteriza a falta de respeito ao próximo.
Para tentar mudar esta noção errônea do motorista sergipano, a SMTT espalhou pela cidade 50 orientadores de trânsito nas faixas de pedestres para fazer com que o motorista enxergue o outro - mas ainda é muitíssimo pouco o que faz esta instituição. Sim, mas e quanto ao uso abusivo de álcool pelos jovens, o que tem sido feito? Ao que parece, necas.
NO ALVO
E este é o ponto crucial. Na opinião de Flávio Vasconcelos, chefe de Comunicação da PRF em Sergipe, a Lei Seca funciona mais do ponto de vista repressivo do que educativo. "Se fosse por esse ponto de vista, os índices seriam reduzidos. A sensação de impunidade faz com que os condutores continuem ingerindo bebida alcoólica. E isso ocorre em todo o país", argumenta.
Para o juiz Ricardo Sant'Ana, a Lei Seca tem tanto caráter pedagógico quanto repressivo. "Ela pretende evitar que a conduta prevista como proibida seja praticada e impõe sanção no caso de sua inobservância", afirma. Mas não se vê ação no dia a dia. O que se vê mesmo são desastres envolvendo álcool e direção. Infração e impunidade.
Será que se houvesse mais fiscalização na Rodovia Inácio Barbosa - ex-José Sarney -, por exemplo, onde roda e vira acontece um acidente que vitima um jovem, a realidade não poderia ser outra? Certamente sim. Aliás, é possível percorrer toda a extensão dela e não deparar com nenhum carro de polícia.
VÍTIMA DA IMPRUDÊNCIA
Não é preciso dividir a via com alguém alcoolizado para ser uma vítima em potencial. Você passa a correr o risco de tornar-se uma vítima a partir do momento em que sai de casa. A prova é viva, mas por pouco. Veja: era sábado, 14 de junho de 2003. Dillon Feitosa Morais, um carateca saudável no auge dos 21 anos, fazia sua caminhada às 18h30 no calçadão da Beira Mar, quando, bem na curva do Iate Clube - bendita curva! -, um motociclista alcoolizado e em alta velocidade invadiu o passeio e o pegou em cheio.
Sabe onde está o resultado desta imprudência e deste desrespeito à lei? Em uma cadeira de rodas. Isso mesmo. Dillon, hoje com 29 anos, está tetraplégico parcial e teve os seus sonhos interrompidos pela negligência da lei. "Falta consciência do povo brasileiro e políticas públicas. Não respeitam a lei. Se bem que não precisa ter lei para se ter consciência e respeito ao próximo", adverte o jovem.
E Dillon Feitosa Morais faz uma análise interessante: "Na época, minha cirurgia custou R$ 8 mil. Com esse dinheiro, daria para comprar vários computadores para a escola pública, por exemplo. A falta de respeito à lei só piora a vida de todo mundo. Assim, é difícil para o Brasil evoluir", constata. Dados da Organização Mundial de Saúde - OMS - dão mostras de que o custo global é estimado em US$ 518 bilhões por ano; os custos dos acidentes de trânsito já foram estimados em 1% a 2% dos PIB dos países.
Para se ter uma dimensão do que é a imprudência no trânsito, até o dia 30 de setembro deste ano 6.045 pessoas, vítimas da imprudência no trânsito, deram entrada no Hospital de Urgência de Sergipe - Huse. Acidentes de trânsito resultam em 146 mil internações no SUS em todo o país.
ATÉ QUANDO CONTINUARÁ ASSIM?
A OMS aponta também que, em todo o mundo, cerca de 1,3 milhão de pessoas perdem suas vidas anualmente no trânsito e cerca de 50 milhões sobrevivem feridas. Na opinião de Georlize Teles, delegada de Delitos de Trânsito, para mudar este quadro, é preciso focar em três pilares: educação com base na cidadania, imposição de limites aos jovens pelos pais e maior rigor na fiscalização.
"É preciso repensar muitas questões. A fiscalização deve ser dura, rigorosa, decisiva. Não se pode ser condescendente com a perda de vidas. A lei de concessão de carteiras precisa ter mais rigor", alerta. Ainda segundo Georlize, é preciso ter responsabilidade no trânsito. "Até quando teremos que abrir inquéritos de pessoas que morrem por pura irresponsabilidade, por puro descuido com a vida do outro. O motorista precisa saber que necessita ter cuidado com ele e com a vida do próximo que trafega na mesma via", alerta.
E é verdade. Todo mundo está exposto ao risco da negligência no trânsito. De acordo com dados do Sistema de Informação de Mortalidade - SIM -, 37.594 brasileiros foram vítimas fatais no trânsito do País em 2009. O levantamento do Ministério da Saúde aponta ainda que o número de homens que morrem no trânsito é quatro vezes maior do que o de mulheres. Em 2009, 30.631 homens - 81,4% - e 6.496 mulheres - 18,4% - perderam a vida no trânsito. As principais vítimas são jovens de 20 a 39 anos. Faixa etária que representa 45,5% - 17.128 - do total de óbitos em 2009.
Na opinião do juiz Ricardo Sant'Ana, algumas medidas podem mudar este desalentador quadro. "Conscientização, com programas de educação no trânsito, por exemplo. Prevenção, através de campanhas publicitárias, fiscalização e punição, com a imposição de sanção", aponta. Ou seja, sozinha, a Lei Seca não pode fazer muita coisa. E quem pode então?
Para o mergulhador profissional Ademir Alves Feitosa, que viu o corpo da jovem Marcela separado da cabeça, no último dia 4, na Inácio Barbosa, minutos depois do acidente, é preciso haver mesmo fiscalização. "Foi muito triste. As autoridades precisam fazer alguma coisa para impedir esse tipo de acidente", argumenta. É preciso apenas, fazer a lei ser cumprida. Para isso, basta criar medidas eficazes. É tão difícil assim?
Foto: Ana Lícia Menezes//Cinform/Reprodução