Publicado em: 06/01/2012
'Ideia é sempre abordar', diz comandante da PM, segundo quem cracolândia surgiu por causa de formação de grupos
Se pessoas estiverem consumindo drogas, serão levadas a DPs; caso não estejam, apoio social será solicitado
| Marlene Bergamo/Folhapress | ||
![]() |
||
| Usuário de crack foge da polícia no centro de São Paulo |
Para tentar acabar com o livre consumo de crack nas ruas de São Paulo, a PM passará a dispersar grupos de moradores de rua em toda a região central da cidade.
Segundo o comandante-geral da corporação, coronel Álvaro Camilo, o objetivo é evitar o surgimento de novos territórios livres para o consumo e venda de drogas ilícitas, como ocorreu na cracolândia há cerca de 20 anos.
O coronel diz que os policiais vão passar a abordar esses grupos sempre que se depararem com eles ou forem solicitados por moradores de qualquer região, em especial do centro e bairros vizinhos.
"A ideia é sempre abordar. Se estiver consumindo droga, ou tráfico, a polícia vai fazer [o encaminhamento para o distrito]. Se não, vamos comunicar as assistentes sociais ou de saúde para agir."
De acordo com o oficial, esse encaminhamento ao distrito será feito quantas vezes for necessário. "A ideia é não deixar formar mais esses grupos em nenhuma região da cidade. O que aconteceu lá [na cracolândia] foi isso, foram formando grupos."
FASES
Essa será a terceira fase da operação da PM iniciada na terça na cracolândia. A primeira deve durar 30 dias, com o objetivo de "sufocar" consumidores e desarticular o tráfico. A ideia é obrigar o viciado a buscar ajuda médica.
A segunda fase é dar atendimento de saúde e social aos viciados. A prefeitura prevê internações compulsórias -quando o viciado não concorda com o atendimento.
Depois disso, começarão as abordagens para dispersar grupos de moradores de rua.
Na terça, com o início da operação, PMs cercaram as ruas onde 400 usuários permaneciam reunidos 24 horas por dia consumindo drogas, principalmente o crack.
De acordo com o delegado-geral Marcos Carneiro Lima, a Polícia Civil também participa dessa fase.
Para o comandante da PM na região central, coronel Pedro Borges, o plano de prender todos os traficantes da cracolândia é utópico.
"Temos certeza de que não vamos acabar com o tráfico de drogas no centro. É utópico dizer que vai acabar", disse.
Anteontem, o comandante-geral da PM, coronel Álvaro Camilo, afirmou que acabaria com o tráfico na cracolândia em 30 dias.
Na região, segundo a polícia, há microtraficantes. Muitos são usuários que vendem pedras para bancar o vício.
Em julho de 2009, a PM, em parceria com a prefeitura, realizou uma operação semelhante, mas o efetivo de homens na região acabou sendo gradativamente reduzido.
Ruínas do crack
Escombros que eram habitados por usuários da droga revelam traços de paixão e vida familiar
| Alessandro Shinoda/Folhapress | ||
![]() |
||
| Prédio abandonado que servia de moradia para usuários na cracolândia |
Objetos pessoais e frases escritas nas paredes dos prédios degradados que eram habitados por usuários de crack servem de registro do cotidiano na região da cracolândia, centro de SP.
O local é um conjunto do que sobrou das moradias que antes ocupavam a área. Escombros com vários recintos que até terça-feira eram usados como quartos -quase uma vila do crack.
As ruínas ocupam quase um quarteirão inteiro entre a rua Helvétia e as alamedas Dino Bueno e Cleveland.
Foi lá que a Polícia Militar retirou usuários de crack no início da operação.
Dentro da "vila", uma grossa superfície de lixo em decomposição chega a formar montes de entulho com mais de um metro de altura, cheirando a urina e fezes. Na entrada, os visitantes são saudados: "Bem-vindos à Vila do Maquense". Não há referência ao que isso significa.
Nos quartos vazios, fogões, bijuterias, escovas de dente, mochilas escolares, roupas dobradas e ursinhos de pelúcia são resquícios de uma rotina familiar vivida em meio a nuvens de mosquitos, ratos e baratas. "Bem-vindo ao nosso lugar de família", diz outra inscrição na parede.
Agentes de limpeza que trabalham na área alertam para o risco de desabamento.
"Ontem uma parede caiu em cima de um rapaz. O certo seria demolir isso aqui", reclama um gari que pediu para não ser identificado.
Entre sapatos velhos e aparelhos eletrônicos quebrados, ainda é possível encontrar indícios inesperados de uma vida literária. Um livro de Monteiro Lobato foi deixado em um sofá; no chão, um dicionário de inglês-português; na parede, uma frase de William Shakespeare (1564-1616): "O mundo é um palco".
Há também ternura nas paredes da cracolândia. "Alex, você é um canalha, mas é o homem que conquistou meu coração". Ao lado da frase, uma fotografia de dois amantes na parede idealiza um romance perfeito.
Em outro quarto, as palavras paz, amor e Deus, grafadas dentro de um coração.
Na entrada do cortiço, árvores natalinas feitas com cabos de vassoura e botas de plástico improvisam uma comemoração recente.
Embaixo, uma oração anônima escrita em bela caligrafia agradece a sorte: "Mais um dia nasceu e com a bondade de Deus estamos vivos".
Higienópolis teme 'invasão' de craqueiros
Moradores de um dos bairros mais nobres da capital já se deparam com usuários de drogas pelas ruas da região
Polícia Militar diz que 'migração' já estava prevista e que reforçou o policiamento em pontos estratégicos
| Juca Varella/Folhapress | ||
![]() |
||
| Usuário de crack, que se identificou como Marcos, 21, disse que se "mudou" para a rua Maranhão, nesta semana |
Na padaria, na academia, ou no supermercado, moradores de Higienópolis comentam: "Eles estão subindo".
A frase é uma referência ao aumento de circulação de craqueiros pelas ruas de um dos mais tradicionais bairros nobres de São Paulo.
Segundo eles, esse movimento é reflexo direto da ação da PM, que começou na última terça, para minar o tráfico de drogas na cracolândia.
"Eles começaram a vir para cá", afirma o empresário Roberto Carvalho, 45. "Os usuários", continua ele, "seguem uma 'lógica topográfica'. Se lá no centro não podem ficar, onde vão pedir comida, dinheiro? Aqui."
A Folha encontrou grupos de usuários de crack perambulando por bairros como Campos Elíseos, Santa Cecília e Barra Funda. Em Higienópolis, o número é bem menor. O que se vê são, geralmente, duplas pelas ruas.
A reportagem conversou com um rapaz, que disse ser usuário de crack, na rua Maranhão. Ele se identificou apenas como Marcos, 21.
Contou que nasceu em Bauru (SP) e que chegou a São Paulo sete anos atrás. Viveu seis deles na cracolândia.
Nesta semana, montou cama de papelão no estacionamento de um supermercado, onde "mora" também um casal de usuários da droga.
Marcos afirma que só sai dali para ir comprar pedra. "Os caras [traficantes] também circulam. Se a gente subiu, eles sobem juntos."
A aposentada Elza Bucciaroni, 85, que vive em Higienópolis há décadas, diz que estranhou a presença de cinco garotos na rua Maranhão ontem. "Estavam sem camisa, magrinhos, com aparência de quem consome droga", conta. "Aqui sempre foi muito tranquilo. Não se via isso."
REFORÇO POLICIAL
Nas palavras do chef José dos Anjos Rodrigues, 49, a ação da PM surtiu "efeito tsunami". "A sensação é de uma invasão, como uma onda que você não tem controle", explica. "Se não agirem, a situação vai piorar. E não só aqui, como em outras regiões."
Usuário de crack, Manoel Alves de Lucena, 33, conta que se "mudou", nesta semana, para uma rua de Higienópolis.
De acordo com o tenente-coronel Wagner Rodrigues, essa "migração" já estava prevista no planejamento da PM. "O policiamento está sendo reforçado em pontos estratégicos, inclusive em Higienópolis."
Para a psicóloga Daniela Dau, 33, outra moradora do bairro, é "óbvio e natural" que, após desmantelarem a cracolândia, os usuários iriam se dispersar, principalmente pelas proximidades.
"Lá, eles não chamavam a atenção", diz. "Aqui, vão chamar. Não dá para a gente ignorar. Achar que, pelo fato de estarmos no meio da riqueza, num bairro privilegiado, vamos ficar imunes a esse problema. É uma sociedade."
Especialistas divergem sobre os rumos da operação no centro
Especialistas na área de atendimento a usuários de drogas e políticas públicas para o setor divergem sobre a ação na cracolândia.
Carlos Salgado, psiquiatra e conselheiro da Associação Brasileira de Estudo de Álcool e Drogas, vê positivamente a ação da PM, como primeira etapa. "A operação policial é parte relevante. É positivo reorganizar o ambiente geográfico ali, de forma a tornar a droga menos disponível".
Salgado também concorda com a divisão em etapas. "Uma ação mais integrada, com mais complexidade, traria mais resultados? Sim. Mas em geral, não é o mais comum. Então fazer em três etapas, faz sentido."
Para o psiquiatra, "se o fluxo da droga for suspenso e o usuário for abordado por um agente de saúde, o coração dele pode bater mais forte para o lado de sair do vício."
"A questão inicial é o controle do tráfico. A sociedade tem que achar um jeito. A realidade amarga é que uma minoria aceita tratamento".
O psiquiatra também acredita que, embora os usuários não representem risco grande aos agentes de saúde, os traficantes acabam impedindo a ação dos profissionais.
INTEGRAÇÃO
Mas há quem discorde. "Eu não entendi nada. A gente tinha um projeto para a cracolândia. E não era operação policial", afirma a psiquiatra Ana Cecília Marques, que participou de reuniões entre governo estadual e prefeitura sobre a ação na região.
Ela diz que abandonou as discussões ao perceber que "as coisas não iam para o lado certo". A psiquiatra, que é professora da Unifesp, defendia a articulação de todos os órgãos da rede de atendimento aos usuários de drogas -como albergues, centros de convivência e leitos para internação- antes do início da operação.
O sociólogo e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Políticas Alternativas da Unesp, José dos Reis Santos Filho, concorda. "O Estado deve ocupar o espaço perdido para o tráfico, mas é preciso saber antes quais são as alternativas que existem para acomodar os usuários".
Renato de Vitto, defensor público e coordenador da comissão de Justiça e Segurança do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), acha "quase pueril imaginar que a polícia vai acabar com o tráfico da cracolândia em 30 dias. Se conseguisse, teria feito nos últimos 20 anos".