Meio médico, meio escravo

Publicado em:  15/07/2013

<p>Incapaz de convencer jovens m&eacute;dicos a trabalhar no SUS, o governo federal resolveu criar um novo profissional, o meio m&eacute;dico meio escravo. Esse profissional, inspirado nos mitol&oacute;gicos centauros e na famosa meia mu&ccedil;arela meia calabresa, vir&aacute; em duas vers&otilde;es, nacional e importado. &Eacute; a pizza que vai ser servida no SUS.</p><p>Durante anos dei aula para os calouros da Faculdade de Medicina da USP. Eram jovens que haviam escolhido uma profiss&atilde;o em que a derrota &eacute; certa. Ningu&eacute;m consegue escapar da morte. Ingenuamente arrogantes e prepotentes, algo compreens&iacute;vel em quem sempre foi o melhor aluno, sobreviveu dois anos de cursinho, e se classificou entre os 300 melhores no vestibular mais competitivo, acreditavam que se tornando m&eacute;dicos curariam doen&ccedil;as letais, mitigariam o sofrimento, descobririam novos rem&eacute;dios e, lutando contra o &uacute;nico inimigo realmente invenc&iacute;vel, ajudariam a humanidade. Durante os dois primeiros anos de curso, a maior dificuldade era mant&ecirc;-los longe do hospital. Bastava surgir a oportunidade de participar em alguma atividade que envolvesse pacientes e a frequ&ecirc;ncia nas minhas aulas de bioqu&iacute;mica minguava. Isso n&atilde;o era um problema, aqueles alunos aprendiam sozinhos.</p><p>Mas nos anos seguintes a realidade desabava sobre a cabe&ccedil;a dos alunos. O primeiro cad&aacute;ver dissecado, cenas de sofrimento, a primeira morte observada de perto, a primeira parada card&iacute;aca que n&atilde;o consegui reverter, um erro que s&oacute; n&atilde;o foi fatal porque um supervisor estava atento. A primeira noite no pronto-socorro, uma l&acirc;mpada quebrada dentro da vagina de uma paciente. Na d&eacute;cada de 80 ano, um aluno se suicidava todo ano. Hoje existe na Medicina da USP um servi&ccedil;o dedicado exclusivamente a ajudar os alunos a enfrentar a impot&ecirc;ncia e o conv&iacute;vio com o sofrimento e a morte.</p><p>Mas a realiza&ccedil;&atilde;o do sonho tamb&eacute;m aparece, sofrimentos s&atilde;o amenizados, situa&ccedil;&otilde;es desesperadoras s&atilde;o revertidas. Aos poucos, os alunos percebem que a medicina moderna &eacute; poderosa, mas complexa. Com conhecimento te&oacute;rico, muita pr&aacute;tica e um trabalho coordenado de toda a equipe, o sonho pode se tornar realidade.</p><p>A arrog&acirc;ncia do calouro que acreditava que se bastava, que o sucesso dependia somente de sua dedica&ccedil;&atilde;o e esfor&ccedil;o, desaparece. Ele aprende que o bom m&eacute;dico, sem recursos diagn&oacute;sticos e equipamentos, sem leitos hospitalares, sem rem&eacute;dios, sem enfermeiros, sem fisioterapeutas, sem nutricionistas e sem um processo de gest&atilde;o sofisticado e &aacute;gil, vai praticar uma medicina med&iacute;ocre.</p><p>Doen&ccedil;as que poderiam ser curadas pioram, doen&ccedil;as control&aacute;veis progridem rapidamente e mortes que poderiam ser evitadas ocorrem frequentemente. Aprendem que o m&eacute;dico &eacute; somente uma pe&ccedil;a importante do sistema de sa&uacute;de. Esse aprendizado n&atilde;o &eacute; te&oacute;rico, os alunos trabalham no caos semiorganizado do Hospital das Cl&iacute;nicas, fazem est&aacute;gios em outros hospitais p&uacute;blicos e em centros de sa&uacute;de. Ao terminar o curso, eles sabem que praticar a medicina sem suporte &eacute; t&atilde;o dif&iacute;cil quanto jogar t&ecirc;nis sem raquete.</p><p>Para os rec&eacute;m-formados, a frustra&ccedil;&atilde;o mais dif&iacute;cil de tolerar &eacute; n&atilde;o praticar a medicina que aprenderam por falta de infraestrutura. Muitos, incapazes de suportar a impot&ecirc;ncia diante de pacientes que voltam piores por falta de rem&eacute;dio, frustrados diante de pacientes que n&atilde;o podem ser tratados por falta de resultados de diagn&oacute;sticos, ou desesperados com a vis&atilde;o de filas infinitas, abandonam a pr&aacute;tica m&eacute;dica. Outros, apesar de despreparados para tarefas administrativas, se tornam gestores na esperan&ccedil;a de melhorar a infraestrutura p&uacute;blica. V&aacute;rios preferem trabalhar em hospitais de elite, onde a infraestrutura &eacute; quase perfeita. Alguns desenvolvem uma casca mais grossa e aceitam fazer o que &eacute; poss&iacute;vel, tolerando a frustra&ccedil;&atilde;o. E &eacute; claro que h&aacute; os que se aproveitam da bagun&ccedil;a para fingir que trabalham e receber o sal&aacute;rio no final do m&ecirc;s.</p><p>N&atilde;o &eacute; de se espantar que nos &uacute;ltimos anos os servi&ccedil;os p&uacute;blicos n&atilde;o tenham conseguido atrair m&eacute;dicos para trabalhar nos postos de sa&uacute;de e hospitais onde as condi&ccedil;&otilde;es de trabalho s&atilde;o piores. Os sal&aacute;rios foram aumentados, mas a maioria dos m&eacute;dicos recusa um emprego fixo de R$ 10 mil em um local sem infraestrutura. O experimento n&atilde;o foi levado adiante, mas seria interessante saber o sal&aacute;rio necess&aacute;rio para convencer os melhores alunos de nossas melhores universidades a venderem seus sonhos.</p><p>Melhorar as condi&ccedil;&otilde;es de trabalho &eacute; a solu&ccedil;&atilde;o &oacute;bvia. Mas isso exige que o governo assuma a culpa e deixe de empurrar o problema com a barriga. Mais f&aacute;cil &eacute; culpar os jovens m&eacute;dicos, pouco patri&oacute;ticos, que s&oacute; pensam em dinheiro e se recusam a trabalhar em um sistema p&uacute;blico de sa&uacute;de bem organizado, eficiente, sem filas e t&atilde;o bem avaliado pela popula&ccedil;&atilde;o.</p><p>Di&aacute;logo no Planalto: &quot;A solu&ccedil;&atilde;o &eacute; for&ccedil;ar os m&eacute;dicos a trabalhar onde queremos. Mas como &eacute; poss&iacute;vel for&ccedil;ar algu&eacute;m que possui um CRM e portanto o direito de praticar sua profiss&atilde;o em qualquer lugar do Pa&iacute;s? F&aacute;cil, basta criar um CRM provis&oacute;rio, que s&oacute; permite ao rec&eacute;m-formado clinicar no local designado. Cumprida a miss&atilde;o, liberamos o CRM definitivo. Mas isso n&atilde;o &eacute; uma forma de coer&ccedil;&atilde;o? N&atilde;o se preocupe, o trabalho c&iacute;vico far&aacute; parte formal do treinamento, basta aumentar o curso em dois anos. Boa ideia, quem escreve a medida provis&oacute;ria?&quot;</p><p>No dia seguinte: &quot;Um aluno com um CRM provis&oacute;rio &eacute; um m&eacute;dico de verdade? Pode tratar pacientes sem supervis&atilde;o? Claro que sim, sen&atilde;o como ele vai trabalhar no local designado? Mas ent&atilde;o ele n&atilde;o &eacute; um aluno, &eacute; um m&eacute;dico escravizado. N&atilde;o, escravid&atilde;o &eacute; inconstitucional, ele tem de ser tamb&eacute;m aluno, vai l&aacute;, escreve a MP, depois resolvemos esse detalhe. Sim, chefe, mas que tal incluirmos os m&eacute;dicos importados na MP? Basta dar a eles uma licen&ccedil;a provis&oacute;ria para praticar a medicina no Pa&iacute;s, uma esp&eacute;cie de CRM provis&oacute;rio atrelado ao local de trabalho. Brilhante, vai, escreve a MP que o Di&aacute;rio Oficial fecha daqui a duas horas.&quot;</p><p>No terceiro dia eles descansaram. Haviam criado o meio m&eacute;dico, meio escravo. A pizza que esperam servir aos manifestantes. Se tudo der certo, agora vamos protestar na frente das Faculdades de Medicina e do CRM, os verdadeiros culpados pela crise na sa&uacute;de p&uacute;blica.</p>


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