Os CAPs precisam de reforma?

Publicado em:  11/10/2017

       

Osmar Ratzke
Presidente da Associação Paranaense de Psiquiatria.
Em recente artigo publicado no jornal Gazeta do Povo (29/9/17) sob o título “Des-humanização de Curitiba: a desconstrução da Saúde Mental no SUS”, os médicos psiquiatras Marcelo Kimati e Adriano Massuda descrevem sua visão política e ideológica, defendendo os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) como modelo de atendimento para transtornos mentais em nosso país. Dentro de uma visão técnico-científica, porém, sem o menor viés político, consideramos o modelo CAPS para a Saúde Mental como um fracasso. O modelo, enfatizado pela última gestão municipal em Curitiba, cuja área de Saúde Mental estava sob os cuidados dos autores acima, vem apresentando resultados medíocres, tendo em vista os seguintes aspectos:
  1. Duração muito longa da permanência dos pacientes na instituição, o que leva à falta de vagas para novos pacientes e pretensa necessidade de serem criados novos CAPS.
  2. Excessiva centralização de todo o sistema de atendimento do SUS (Sistema único de Saúde) no próprio CAPS – que é um equipamento caro e, sem dúvida, não serve como porta de entrada.
  3. Tentativa de substituição de leitos hospitalares por leitos nos CAPS III, sem, porém, a presença de médico plantonista no período noturno – o que é necessário tanto do ponto de vista técnico quanto legal.
  4. Adoção, nos CAPS, de um modelo de recursos humanos horizontal e romântico, chamado de T.R. (Técnico de Referência), em que o atendimento dos pacientes é nivelado, tendo todos os profissionais um mesmo papel terapêutico na assistência, independente de sua formação original. Tal estrutura mostrou-se pouco eficaz, pois os técnicos têm diferentes formações universitárias – o que traz confusão de papéis e não nos parece ser o melhor para pacientes com gravidade. Neste caso, vale a antiga máxima: “cada qual no seu quadrado”.
Tanto a organização dos CAPS III, que tem leitos para “acolhimento” (internamento?), quanto a proposta de criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais reconhecem que ainda pode ser necessário o internamento em Psiquiatria. No entanto, existe uma subutilização dos poucos leitos em hospitais gerais, tendo em vista que, além de outros fatores, não são viáveis financeiramente. A centralização nos CAPS (como porta de entrada no sistema) vai contra a evolução científica da Psiquiatria, uma vez que, graças a tratamentos cada vez mais modernos, podem ser priorizados os ambulatórios especializados. Os modernos centros de Saúde Mental, como o CAISM de São Paulo, seguem nesta direção: ambulatório especializado e atendimento de emergências psiquiátricas, um Hospital-Dia (que seria equivalente a um CAPS, mas dentro de outras diretrizes) e um pequeno hospital psiquiátrico para internamento integral de pacientes mais graves. Essa estrutura preenche todas as necessidades dos diferentes casos de pacientes dentro da área psiquiátrica. Ao contrário do que cita o artigo dos colegas, ninguém da Psiquiatria moderna é favorável aos antigos manicômios, nem pretende retroceder e começar a torturar pacientes. A moderna Psiquiatria científica, que vemos em congressos mundiais da área e que estudamos diariamente nos inúmeros artigos publicados em revistas técnico-científicas de alto gabarito, reforça nossa visão de que muito tem que ser revisto e aperfeiçoado na pretensa “reforma da assistência psiquiátrica”. Reforma esta que conseguiu jogar os pacientes para debaixo dos viadutos nas grandes cidades, não só do Brasil como em outros países. Os CAPS podem ser úteis em três funções:
  1. Como equipamento de transição para o paciente egresso de internamento integral.
  2. Para o atendimento de pacientes em que o ambulatório é insuficiente para o controle do quadro, mas não tão graves que necessitem de internamento integral.
  3. Para pacientes crônicos que necessitam reabilitação social, familiar e profissional. Isto é válido tanto para o atendimento de transtornos mentais quanto de dependências químicas. Lembramos, porém, que as outras pontas são necessárias: o ambulatório especializado (não podemos pensar na ideia romântica que os pacientes psiquiátricos possam ser atendidos somente por médicos não-psiquiatras das UBS) e o hospital psiquiátrico (com número limitado de leitos, internação breve, equipe multiprofissional, atendimento de familiares, etc.).
Infelizmente, o modelo anterior que foi estimulado durante anos pelo Ministério da Saúde, ao contrário do disposto na Lei 10.216/2001, acabou com os ambulatórios credenciados e não criou ambulatórios especializados próprios, centralizando os recursos nos CAPs. Do ponto de vista técnico-científico, a Psiquiatria hoje é uma especialidade médica predominantemente ambulatorial, pois 90% dos casos podem ser atendidos em um bom ambulatório especializado, inclusive com a participação de profissionais da Psicologia. Outra questão que modernamente está sendo muito debatida nos meios científicos é a chamada “patologia dual”. Trata-se da existência de comorbidade entre transtorno mental e dependência química, inclusive alcoolismo. Avaliando os casos destas patologias percebe-se que muitos casos de dependência são a consequência de quadros de transtorno mental pré-existente e que ambos devem ser tratados concomitantemente. Outros casos podem apresentar transtorno mental proveniente do abuso de drogas ou álcool. De qualquer forma, o tratamento destes pacientes deve ser também “dual” e pode ser realizado em um mesmo ambiente terapêutico, com equipes especializadas. Esta questão não tem sido abordada pelos defensores do modelo anterior. No âmbito dos CAPS, muita coisa tem que ser modificada para facilitar o acesso aos equipamentos existentes. Uma verdadeira reforma no atendimento em Saúde Mental (e não “reforma psiquiátrica”) deve ampliar o acesso aos pacientes, iniciando prioritariamente com o ambulatório, em seguida pelos CAPS e, se necessário, pelo internamento integral breve.  


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